Cinema de cabelo duro

“Pelo Malo” traça vasto panorama da sociedade venezuelana atual, sem perder olhar delicado sobre relação familiar que é seu tema

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS, via Outras Palavras

Não é todo dia que chega ao Brasil um filme da Venezuela. Menos ainda, um filme extraordinário como Pelo malo, premiado numa porção de festivais mundo afora, muito bem recebido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado, e que entra em cartaz nos próximos dias.

Tudo gira em torno de um impasse aparentemente banal: contra a vontade da mãe, um menino de 9 anos, mulato, quer alisar o cabelo para parecer um cantor popular. A faísca produzida por esse atrito doméstico basta para a diretora e roteirista Mariana Rondón iluminar toda uma sociedade, uma época, um país.

Além de querer alisar seu “cabelo ruim”, o pequeno Junior (Samuel Lange Zambrano) gosta de cantar e dançar. Sua mãe (Samantha Castillo), jovem viúva que tenta recuperar o emprego de vigilante particular, vê em tudo indícios de que o filho é – ou está prestes a virar – um maricón. Entre as atitudes que ela toma na esperança de “torná-lo um macho” está a de fazer sexo com o amante diante dos olhos do menino.

O prodígio mais notável do filme é manter em seu centro a tensão da troca de olhares – perplexos, hostis – entre mãe e filho, ao mesmo tempo em que expõe um amplo e vívido painel histórico, social e cultural. Fundo e figura recebem a mesma atenção da câmera, sem que um desfoque ou obscureça o outro.

Caracas é aqui

A Caracas que pulsa na tela, com seu trânsito caótico, seus ônibus lotados, seus ambulantes, suas paredes descascadas e pichadas, seu lixo nas ruas, assemelha-se a qualquer metrópole brasileira. Aqui e ali, entretanto, sobretudo nas breves inserções de programas de TV e rádio, aparecem sinais inequívocos de tempo e lugar: o messianismo popular em torno de Hugo Chávez (então agonizante), a obsessão venezuelana com os concursos de miss.

Parece que Pelo malo foi acusado em seu país de ser “antichavista”, o que mostra que a estupidez não tem fronteiras. O alcance de sua crítica vai muito além de um governo e um regime específicos, atingindo uma configuração histórico-cultural comum a todo o continente, com seus preconceitos, estereótipos e hierarquias de gênero, etnia e classe social.

Miss ou soldado

Uma das passagens mais eloquentes, nesse sentido, é aquela em que Junior vai com uma amiguinha (Maria Emilia Sulbarán) ao fotógrafo para fazerem a 3×4 da carteirinha de escola. O fotógrafo diz que, por uns bolívares a mais, ela pode ser fotografada com uma coroa de miss e ele com uma boina do exército. Não há outras opções.

Assim como equilibra sutileza e contundência na exposição de seus temas, a diretora consegue a proeza de não deixar que a gravidade do drama sufoque a leveza e o humor com que a narrativa é conduzida. A imaginação confusa e o espírito lúdico de Junior – em especial, suas tentativas desastradas de alisar o indomável pelo malo – produzem momentos cômicos memoráveis, assim como suas conversas disparatadas com a amiguinha.

Numa cena marcante, as duas crianças estão no corredor externo de seu prédio e se divertem observando os moradores do edifício em frente, um daqueles monstruosos pardieiros com centenas de pequenos apartamentos. Ali eles veem, e vemos junto com eles, que entre as misses e os soldados, há uma gama vertiginosamente variada de existências humanas. O clima ao mesmo tempo triste e divertido dessa cena, espécie de versão terceiro-mundista de Janela Indiscreta, impregna todo o belo filme de Mariana Rondón.

 

Fonte: Revista Fórum 

+ sobre o tema

O casamento do nazismo com a escravidão no Brasil. Por Marcos Sacramento

A história do país é cheia de episódios indigestos,...

Movimento quilombola divulga carta contra racismo e pedindo titulação de terras

Conaq ressalta a importância da aprovação do Decreto Federal...

Edson Ikê

Design gráfico, ilustrador e trompetista De origem periférica, desde muito...

para lembrar

Simpósio:Estudos em homenagem ao professor Kabengele Munanga

Coordenação: Professor Associado Dr. ALBERTO AMARAL JUNIOR Coordenador da...

UnB reúne escritores para debate sobre racismo e ‘democracia racial’

Evento conta com 11 autores da literatura negra brasileira Debate...

Hilton Cobra retorna aos palcos com o espetáculo “Traga-me a cabeça de Lima Barreto!”

Os atores Lázaro Ramos, Caco Monteiro, Frank Menezes, Harildo...

Bonecas Barbie ganham 3 novos tipos de corpo, 7 tons de pele e 22 cores de olhos!

De olho na diversidade da beleza, a Barbie está cheia de...
spot_imgspot_img

Templo Espírita Ogum Megê passa a ser considerado Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro

O Templo Espírita Ogum Megê, em Vaz Lobo, na Zona Norte, agora é considerado Patrimônio Imaterial do estado do Rio de Janeiro. A iniciativa...

Exposições unem artistas de diferentes gerações para resgatar contribuição negra na arte

"Livros sempre mostraram que a nossa história começava a partir da escravização", afirma a curadora Jamile Coelho que ressalta a importância de museus e...

Clássico de Carolina Maria de Jesus será lançado em audiolivro na voz de Tatiana Tiburcio

Obra mais conhecida de Carolina Maria de Jesus, "Quarto de despejo" será lançado no fim deste mês em audiolivro inédito pela Supersônica na voz de...
-+=