Foi o Cacá, Carlos Eduardo Corrêa, pediatra a quem tanto admiro e sou grata, que me lembrou como o alerta de segurança das aeronaves serviam para a vida: em caso de despressurização (ou, atualmente, de muita pressão), coloque a máscara de oxigênio primeiro em você antes de ajudar quem está ao seu lado. Não há egoísmo nisso, mas obviedade: se você deixar de respirar, não conseguirá apoiar ninguém.
Essa é uma lição importante a ativistas que lidam, diariamente, com outra obviedade: nenhuma transformação é possível a partir do indivíduo, as mudanças sociais e as lutas efetivas para que ocorram são sempre coletivas. Mas na aposta acertada de se dedicar ao todo, ao grupo, há o risco de perder o fôlego e precisar parar. Escrevo este alerta para mim mesma e para minhas companheiras e companheiros de movimento negro. A luta pelo nosso povo só será efetiva se conseguirmos nos manter vivas. Cada pessoa é tão essencial no que temos construído coletivamente, que não podemos perder ninguém. E a cada notícia de que perdemos alguém para a negligência intencional do Estado, complicada por coronavírus, além dos pêsames e da tristeza e da indignação vem também o sentimento de que a luta se enfraquece.
É preciso sobreviver ao genocídio. Desviar do tiro, afastar o vírus com isolamento, álcool 70 e máscara PFF-2, encontrar modos de não sucumbir à ansiedade, à depressão, à pressão alta. Seguir de pé para arrecadar comida para quem precisa, afinal, se tem gente com fome, dá de comer, como aprendemos com o poeta Solano Trindade. Oferecer monitoramento próximo e todo recurso possível a quem tem sintomas de covid, com agentes populares de saúde. Trabalhar pelo impeachment do governo que nos mata. Denunciar internacionalmente os abusos, as agressões, as violações de direitos e o genocídio negro e indígena. Participar de um sem fim de lives, debates, reuniões, conversas, redes, ações. Mas sem esquecer de respirar. Criando possibilidades de descanso e alegria, apesar da dureza dos dias.
Pessoalmente, conectar-me à memória de mulheres negras me nutre de ar e esperança. Em situações tão ou mais difíceis do que a nossa, elas produziram vida para si e para os outros. Evoco minha avó Polu, Esperança Garcia, Maria Firmina, Eunice Cunha e tantas de vozes e escritas insurgentes reunidas neste livro, que me orgulho de ter organizado em parceria com minha irmã Christiane Gomes, da Fundação Rosa Luxemburgo, e com Maria Mazarello, da Mazza Edições. Estava com Chris no Maranhão, em oficinas e escrita para mulheres negras a partir destes textos, quando se alastrou o vírus e precisamos nos confinar. Quanto ar há nas lembranças dos relatos de quilombolas de Santa Rosa dos Pretos (saudades, dona Dalva, Anacleta, Zica, Sabrina).
Poder pisar a terra, avistar as montanhas, comer bananas plantadas por um vizinho e tomar o leite ordenhado por outra vizinha, enquanto não tenho minha própria produção, é um dos dois maiores cuidados comigo nestes dias. O outro é trabalhar para pôr de pé um espaço de encontro, formação, acervo, memória de mulheres negras, a partir do legado de Sueli Carneiro. Sinto como se colaborasse para criar condições de acessarmos mais facilmente nossas raízes. E como são importantes as raízes no processo de respiração.