Crescimento no Brasil não pode passar por cima de direitos, diz ONU

Genebra – Conversei na manhã de hoje com a armênia Gulnara Shahinian, relatora especial da Organização das Nações Unidas para as Formas Contemporâneas de Escravidão, que passou duas semanas no Brasil a fim de produzir um relatório que foi apresentado na tarde desta terça (14) na reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Disse que verificou o reconhecimento do problema pelo governo brasileiro e o comprometimento de setores sociais, políticos e econômicos com sua erradicação. Segundo ela, “o país está fazendo e aprendendo com isso. Mas há muito que fazer ainda”.

Para a relatora, o peso das questões econômicas deve ser considerado, mas o debate sobre desenvolvimento e crescimento precisa levar em conta os impactos causados por eles. Avalia que o Brasil pode se tornar a quinta maior economia do mundo, mas isso não pode ser feito à custa dos direitos das pessoas.

Para Gulnara, há mais “inspiração” para o combate ao trabalho escravo no nível federal de governo do que no nível local. Segundo ela, o país é imenso e se faz necessário que os mesmos processos que levaram a conquistas no nível federal cheguem ao âmbito estadual com a introdução de políticas públicas. Por exemplo, deveria ser obrigatório que todos os estados tivessem planos para combater a escravidão e os executassem – hoje, Maranhão, Piauí, Tocantins, Pará, Mato Grosso e Bahia possuem planos, além do Plano Nacional, mas nem todos cumprem o que prometeram.

Ela afirma, em suas conclusões, que “as ações exemplares correm o risco de serem ofuscadas se ações urgentes não forem tomadas para quebrar o ciclo de impunidade de que gozam proprietários de terra, empresas nacionais e internacionais, e intermediários (como os contratadores de mão-de-obra, conhecidos como “gatos”) que se beneficiam do trabalho escravo”.

Um exemplo disso é uma atuação mais forte junto a aprovação de leis, fator necessário para institucionalizar esses processos. Para Gulnara, a mensagem mais clara que o governo brasileiro pode dar para mostrar que o crime será punido é aprovar a Proposta de Emenda Constitucional 438/2001, que permitiria o confisco das terras onde houvesse trabalho escravo.

A delegação brasileira no Conselho de Direitos Humanos chamou o relatório de “objetivo e balanceado”, destacou casos de boas práticas citado no relatório, mas teceu algumas críticas ao texto. Disse, por exemplo, que não é tarefa do governo e sim do Congresso Nacional a aprovação de leis, PEC 438/2001.

A aprovação sim. Mas o governo brasileiro tem sistematicamente falhado na articulação política para possibilitar a aprovação, no que pesem os esforços de ministérios da área social – com menos poder no governo. O Planalto, quando realmente quer, gasta tempo e recursos, atuando junto ao Congresso Nacional pelos seus interesses. De reformas previdenciárias ao pré-sal, leis passam com a ação do Executivo. Quando é para ajudar os trabalhadores, a situação é diferente?

A delegação também afirmou que a questão da competência da Justiça Federal para o caso de trabalho escravo está resolvida. Mas apesar da decisão positiva do STF apontando isso (ver abaixo), o presidente da Suprema Corte, Cezar Peluzzo reabriu a discussão na análise de outro caso por discordar da decisão.

Destaco algumas das conclusões e recomendações da relatora:

– Pobreza é a principal causa da escravidão. Nesse sentido, mais atenção deve ser dada a erradicação da pobreza. Neste contexto, desenvolvimento local e reforma agrária devem ser priorizados. Programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, e reinserção de trabalhadores devem ser priorizados para essas populações em áreas urbanas e rurais;

– Programas que garantam direitos básicos, como alimentação, saneamento, saúde e educação, devem ser implementados para fornecer uma reabilitação sustentável das vítimas e sua integração na vida econômica. O governo brasileiro também deve aumentar os programas em educação em direitos humanos voltados a trabalhadores libertos ou em áreas vulneráveis;

– Aqueles que defendem os direitos humanos no Brasil têm sido ameaçados, feridos e mortos. Ela sugere o fortalecimento do corpo policial para garantir proteção a estas pessoas e combater a impunidade;

– Reformas legislativas são necessárias para prevenir a reincidência, como o aumento da pena mínina de dois para cinco anos de cadeia a quem incorreu nesse crime. A incorporação de algumas conquistas como lei também foi sugerida, a exemplo da “lista suja” do trabalho escravo (que relaciona quem cometeu esse crime) e a própria existência do grupo móvel de fiscalização (que verifica denúncias e liberta pessoas);

– Reforçar a competência da Justiça Federal para julgar o crime de trabalho escravo, previsto em decisão do Supremo Tribunal Federal de novembro de 2006. Para ela, o governo também deve atuar para trazer todas as graves violações aos direitos humanos para a esfera federal, seguindo as recomendações feitas pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas;

– O governo precisa investir recursos para dar apoio às vítimas de tráfico de seres humanos, como a criação de abrigos e apoio legal. Também deve dar apoio financeiro para as vítimas recuperarem e reconstruírem suas vidas ;

– Ela ressalta que graças ao trabalho do governo, sociedade civil e setor empresarial, a escravidão não está presente em todos os setores econômicos no país. Ela encoraja empresas a aderirem ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que reúne companhias que aceitaram atuar contra esse crime em suas cadeias produtivas,

– A relatora reconhece o importante papel desempenhado pela Organização Internacional do Trabalho nesse processo e sugere ao governo dividir o exemplo do sistema de combate ao trabalho escravo com outros países da America Latina.

Em tempo: fui convidado para representar a sociedade civil brasileira em um debate sobre o tema nesta quarta aqui nas Nações Unidas. Depois trago as impressoes.

Fonte: Blog do Sakamoto

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