Dia Internacional da Mulher: homenagens tão lindas quanto um tapa na cara – Por: Madeleine Lacsko

Essa estrada de Carnaval e Dia Internacional da Mulher deixa nas redes sociais e na nossa caixa postal um rastro de coisas que era melhor nunca ter visto. A maior parte delas gira em torno de um eixo de perversidade, prova de que convivemos com pessoas que realmente sentem prazer com o sofrimento dos outros e sequer cogitam um mundo de convivência igual e pacífica, pautado pelo direito à busca da felicidade.

Li, inclusive de pessoas com quem já entrei no elevador, explicações sobre o fato de que as mulheres brasileiras não podem reclamar de serem tratadas como prostitutas — ainda que jamais tenham feito essa opção de vida — porque há mulheres nuas no Carnaval — a quem também ninguém perguntou se são prostitutas ou não.

Outro ponto é que ser “prostituta”, no contexto dessas pessoas, não se trata de fazer comércio do sexo, seguindo regras claras e válidas para ambas as partes, equivale a estar disponível para os avanços sexuais de qualquer homem, a qualquer tempo, mesmo quando discordar.

A mesma regra vale para várias homenagens do Dia Internacional da Mulher, tão lindas quanto um tapa na cara. Preciso confessar que gosto de receber parabéns, acho bonito quando alguém manda mensagem, faz um texto legal, dá uma lembrancinha, empresta um sorriso. É um tipo de gentileza que ilumina o meu dia.

Falo aqui daquela “homenagem” que reafirma a falta total de disposição para essa empreitada de fazer com que meninas e mulheres também tenham o direito de ser tratadas como seres humanos. Impossível não ter lido as milhares de mensagens exaltando as mulheres por serem delicadas, zelosas, dedicadas e incansáveis para equilibrar trabalho e deveres de casa. Sinceramente, quem escreve isso já viu uma mulher de perto?

O fio que une a crença de que aguentar injustiça é elogio, com a outra de que a mulher é responsável por não ser tratada como objeto é o mesmo: o prazer com a dor alheia.

É famosa a linha de raciocínio formada pela equação: mulher que “não se dá o respeito” = prostituta = não pode reclamar de assédio e estupro. É corriqueira como, por exemplo, a história da grande revolta masculina porque 90% das mulheres dizem que não gostam de cantadas. A conta só faz sentido quando a gente parte do princípio de que estamos construindo uma sociedade em que o prazer masculino é independente das mulheres ou até às custas do sofrimento delas.

A maioria das mulheres brasileiras sente — ainda quando é menina — aquele bolo na garganta que dá quando a gente ouve uma cantada do tipo ameaça de estupro, olha com medo e encontra o olhar de prazer do homem que disse aquilo, acompanhado de nenhuma solidariedade de quem presencia a cena. Ali, a gente entende que é socialmente aceitável o homem sentir prazer com o sofrimento, o medo e a humilhação da menina.

 

Protesto marca o Dia Internacional da Mulher, na Avenida Paulista, em São Paulo. As mulheres protestam contra a violência, pela igualdade, liberdade e por mais direitos. Foto de Renato S. Cerqueira/Futura Press.

É a mesma lógica por trás da exploração não remunerada do trabalho doméstico. Por que todas as tarefas relacionadas as crianças são de responsabilidade da mãe ou de mulheres na maioria das vezes, mesmo quando a criança tem um pai ou outros homens na família? Quando a gente ouve que o pai “ajuda” a mãe, quer dizer simplesmente que ele não se sente responsável e tem apoio para se manter nessa posição.

Temos uma convenção social que reconhece como sucesso a leniência e a malandragem de largar no colo dos outros as próprias responsabilidades para levar vantagem indevida no campo profissional e financeiro. Basta comparar em qualquer empresa qual o percentual de homens e mulheres que pedem flexibilidade para tarefas como levar crianças, idosos ou doentes a atendimentos de saúde ou participar de reuniões escolares.

O cara que não cumpre com suas obrigações faz alguém cumprir com o dobro de tarefas que tem e ainda prejudica os homens que tentam jogar limpo. Por que aquele cara quer sair para pegar o filho na escola se o outro cara também tem filho e sempre pode ficar até tarde? Dizer que a mulher é a rainha de equilibrar tarefas é a legitimação do engodo, da competição profissional desleal e do prazer com conquistas feitas na base de pisotear quem está ao redor.

Para mim, a chave a ser desligada por nós é essa: de aceitar o prazer com sensações ou conquistas que são frutos da dor das outras pessoas. Não podemos compactuar com uma sociedade construída sobre a premissa de que é possível ser feliz fazendo outras pessoas infelizes e insistir em responsabilizar as vítimas.

Em nguni-bantu a palavra humanidade é ubuntu, mas o termo implica que ser um humano exige também reconhecer verdadeiramente todos os outros como tal, como espelhos e como partes iguais de uma coletividade. Felicidade só existe como construção coletiva, feita a partir da consciência plena da igualdade. É tarefa de todos nós lembrar diariamente que esse caminho existe, é possível e não admite desvios.

madelene

Madeleine Lacsko

Jornalista profissional e mãe experimental.

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Fonte: Blogueiras Feministas

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