Flávia Bomfim borda para João Cândido em “O Adeus do Marujo”, lançamento da Pallas Editora

“O mar é um portal onde nasce a vida, lugar onde ondulam memórias, sonhos e também batalhas”. Com essas palavras, a baiana Flávia Bomfim, que flutua numa ponte aérea entre Salvador e Madri, na Espanha, inaugura a sua versão poética, porém baseada em leituras e pesquisas, da vida e obra de João Cândido (1880-1969), o legendário personagem que liderou a Revolta da Chibata no Rio de Janeiro, em novembro de 1910. O livro ilustrado “O Adeus do Marujo” já está a caminho das livrarias de todo o país! Algumas de suas ilustrações venceram, em 2021, um prêmio internacional na Coréia do Sul, o Nami Concours, na categoria Green Island.

O Almirante Negro “que é saudado no porto pelas mocinhas francesas”, como cantou Elis Regina, ganha agora, pela Pallas Editora, uma homenagem tão delicada quanto a canção “O mestre sala dos mares”, composta há quase 40 anos por João Bosco e Aldir Blanc. Com 48 páginas, o livro resgata a figura de João Cândido e a sua luta de marinheiro negro e pobre que viajou o mundo antes de comprar a briga por mais respeito e melhores condições de trabalho para a categoria. Vale lembrar que eram os primórdios do fim da escravidão, decretada em 1888 através da Lei Áurea, e também os anos iniciais da República Federativa do Brasil, proclamada em 1889.

“Há uns cinco ou seis anos, estava na Bahia com Mariana (Warth, editora da Pallas) e ela me desafiou a pensar um livro sobre esse herói. Topei, claro. E fui me aproximando dele de forma visceral. Apesar de ser um personagem de muito destaque na história do nosso país, é recente a importância que estamos dando a ele, em especial”, pontua a autora. Por sorte, a imprensa da época registrou largamente os fatos em torno do motim que pôs fim às chibatadas como punição imposta pelos oficiais navais brancos aos marinheiros negros.

Bomfim reconta a longa e brava existência do marinheiro com muita delicadeza, através de bordados sobrepostos em fotos dos jornais. Aliás, o nome do livro alude a um bordado feito pelo próprio João Cândido, nos quase dois anos em que esteve preso na masmorra de Ilha das Cobras. Bordar era uma de suas ocupações na cela onde era castigado junto dos 17 colegas que também atuaram na bem sucedida Revolta da Chibata.

De seus tantos experimentos com linha e pano, apenas dois ficaram para testemunhar o feito. Eles foram expostos recentemente na Bienal de São Paulo, em 2020. “O Adeus do Marujo” não só nomeia o livro como ganhou releitura de Flavia Bomfim em suas páginas. Uma pessoa que borda sabe as camadas profundas que acessamos no ato de bordar. Ele é, em si, poético. Traz, no ato da repetição, um certo silêncio, uma espécie de meditação que nos coloca em contato com emoções e pensamentos.

“Era como se João me contasse algo e os nossos tempos se cruzassem. Assim cheguei na concepção de como desenvolver o livro: a partir da imaginação de duas pessoas bordando, perfurando, dilacerando essa história. A linha atravessa o tecido e fere a trama. Essa trama ferida é a chave para escolher como recontar uma história. Por isso, o avesso. O avesso é aquilo que não se esconde. É todo o caminho tortuoso que a gente traça nesse campo invisível até você olhar a parte de trás do bordado, que é um mapa de tudo isso que está na superfície”, rebobina.

A autora se encantou primeiro pelas imagens encontradas em suas pesquisas. “Essas fotos me aproximaram de João – esse homem, antes de tudo. Fantasiei um encontro com ele. Usei a cianotipia, que já estava experimentando em outros trabalhos, naquele material reunido. Até perceber que o cian, um tipo de azul, era como o mar: insistente e contínuo na visão de um marinheiro. João disse que o mar era seu amigo. Entendi que não poderia fugir desse azul do mar que sabe tudo”.

O texto, não menos belo que o visual do livro, veio em seguida. Partiu de uma pesquisa que amplificou muitas vozes, na tentativa de cruzar contos e narrativas diferentes sobre a história e tentar, sobretudo, dar um tom literário a esse enredo. “O que aconteceu no passado não se muda, mas como a gente conta, sente e se relaciona com ele, isso, sim, se muda. Na vida de João está a luta do povo negro. E, da mesma forma que o avesso do bordado precisa ser mostrado, temos que mostrar toda a beleza e força que há nos bastidores dessas histórias de luta”, enfatiza Flávia Bomfim.

O Adeus do Marujo

Flávia Bomfim

Pallas Editora

48 páginas

Preço sugerido de R$ 89

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