Há quem ame o país só nas Copas. Fora delas, quer que tudo se exploda

por  Leonardo Sakamoto

Um carro enfeitado com uma grande bandeira do Brasil avançava velozmente pelo acostamento para fugir do congestionamento na rodovia dos Imigrantes na manhã desta segunda.

Um casal, que saiu animado na tarde de ontem de um restaurante no Itaim, estacionou o carro – decorado de verde e amarelo – em uma vaga para pessoas com deficiência. O veículo não possuía nenhuma sinalização de pertencer a uma pessoa com deficiência.

No sábado, um outro possante – que parecia uma festa junina ambulante de tanta bandeirola verde e amarela – abriu a janela, arremessou uma latinha de cerveja vazia na direção de uma pessoa em situação de rua que dormia no canteiro central de uma avenida, em Pinheiros, e disparou, cantando pneus.

Os três causos foram em São Paulo, mas poderiam ter sido em qualquer lugar.

Estava me perguntando qual a profundidade desse rompante de “amor ao país” fomentado pela Copa. Por conta de cenas como essas, tenho a certeza que é mais raso que uma colher de sopa.

Olha, não me entendam mal. Quem lê este espaço sabe que amo futebol, assisti praticamente a todos os jogos da Copa e estou torcendo horrores – pela seleção e pelo meu bolão, que ninguém é de ferro. Mas eu, que detesto patriotadas, odeio ainda mais pseudopatriotadas.

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Até porque quem se sente pertencente a um lugar, entende que suas ações individuais não podem tornar a vida dos outros um inferno sob o risco de colocar a perder a qualidade de vida da própria coletividade. Do que adianta, portanto, encher o seu carro de bandeirinhas, para demonstrar seu amor ao país em tempos de Copa, se você é um idiota que acredita que o mundo existe para servi-lo?

Viver em sociedade passa mais por entrega e concessão do que por reafirmação de desejos e vontades pessoais a cada momento. É pensar: será que isso não vai atrapalhar os outros?

Depois os mesmos fuinhas ainda devem encher os pulmões e cantar: “eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”. O que prova que esses discursos nacionalistas empacotados e entregues nestes momentos são tão válidos quanto uma nota de três reais.

Agradeço a Alá o fato de não ter interiorizado o que disciplinas como Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira, restolhos utilizados pela ditadura, tentaram me dizer – apesar dos fantásticos professores que tentaram dar outro sentido ao malfadado currículo. Nunca entendi como algumas escolas se preocupam mais em ter alunos que saibam o hino à bandeira do que compreender Guimarães Rosa.

Quando pequeno, lembro-me de ir a apenas um desfile do Dia da Independência, na avenida Tiradentes, aqui em São Paulo. E, mesmo assim, não ter ficado o suficiente para entender o que aquele bando de gente agitando bandeirinhas estava fazendo por lá. Uma das maiores contribuições dos meus pais foi exatamente ter me poupado de toda essa papagaiada patriótica.

Sei que datas como a Copa servem para compartilhar (ou enfiar goela abaixo) elementos simbólicos que, teoricamente, ajudam a forjar ou fortalecer a noção de “nação”. Mostrando que somos iguais (sic) e filhos da mesma pátria – mesmo que a maioria seja tratada como bastardos renegados.

Por isso, me pergunto se passado este momento não poderíamos fazer uma pausa para reflexão sobre nós e como estendemos o direito à dignidade a todos que habitam este território.

Ao invés de nos enrolarmos em bandeiras e transformar automóveis em carros alegóricos, poderíamos nos juntar para discutir a razão de chamarmos indígenas de intrusos, sem-teto e sem-terra de criminosos, camponeses de entraves para o desenvolvimento e imigrantes bolivianos e haitianos de vagabundos. Ou reivindicar que o terrorismo de Estado praticado durante os anos de chumbo seja amplamente conhecido, contribuindo – dessa forma – para que ele não volte a acontecer como tem acontecido.

O melhor de tudo é que, todas as vezes que alguém levanta indagações sobre quem somos e a quem servimos ou conclama ao espírito crítico sobre o país, essa pessoa é acusada de não amar o país, no melhor estilo “Brasil: ame-o ou deixe-o” dos tempos da Gloriosa.

Não amo meu país incondicionalmente. Mas gosto dele o suficiente para me dedicar a entendê-lo e ajudar a torná-lo um local minimante habitável para a grande maioria da população. Gente deixada de fora das grandes festas, entregues ao pão e circo de desfiles com tanques velhos e motos de guerra remendadas. Mas que, quando voltam para casa, encaram a realidade da falta, da ausência, da dificuldade e da fome.

Qual a melhor demonstração de amor por um país? Vestir-se de verde e amarelo e sair gritando Brasil na rua? Ou ter a pachorra de apontar o dedo na ferida quando necessário?

Ama a si mesmo, por outro lado, os que se escondem do debate, usando como argumento um suposto “interesse nacional” – que, na verdade, trata-se de “interesse pessoal” (aliás, somos craques em criar discursos que justificam a transformação de interesses de um pequeno grupo em questão de interesse público). Se questionados, correm para trás da trincheira fácil do patriotismo.

Que, afinal de contas, como disse uma vez o escritor inglês Samuel Johnson, “é o último refúgio de um canalha”.

 

 

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