Shaperville e o invisível sistema de apartheid brasileiro
Pesquisador das relações raciais, membro da ALARA (Afro Latin América Research Association) e ANAI ( Associação Nacional Apoio ao Índio), escritor e membro da Comunidade Bahá’í do Brasil
A luta contra o racismo e a discriminação racial têm demandado esforços mundiais ao longo de quase dois séculos, mas sua completa eliminação parece ainda estar longe de ser concretizada. De todos os países do continente americano, o Brasil — grande beneficiário de mão de obra africana — foi o último país a abolir formalmente a escravidão (1888). Os efeitos são ainda visíveis na sociedade brasileira.
A data, além de qualquer celebração, marca, sobretudo, o momento para sérias reflexões acerca da realidade na sociedade brasileira e das mudanças necessárias e urgentes. A prática do racismo, um sistema de apartheid invisível e tão entranhado na vida social e econômica brasileira, continua ultrajando a dignidade de milhões de cidadãos.
Vinte e um de março foi declarado pelas Nações Unidas, em 21 de novembro de 1969, como Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, em memória ao massacre de Shaperville, uma das vizinhanças de Joanesburgo, África do Sul. Ali, em 1960, um grupo de 20 mil negros se reuniu e caminhou pacificamente para protestar contra a Lei do Passe, que obrigava negros da África do Sul a portarem uma caderneta, uma espécie de passaporte, que indicava onde podiam ir ou não dentro de sua própria cidade e região. Até mesmo o uso de banheiros era segregado.
Com uma força policial totalmente branca e opressora, os participantes da marcha foram recebidos com rajadas de metralhadoras que mataram 69 pessoas indefesas — mulheres, homens e crianças — e deixaram centenas de feridos. A notícia chegou finalmente à opinião pública mundial, que passou a dar atenção à questão do sistema de apartheid (separação). Internamente, entretanto, o governo sul-africano intensificou o seu sistema opressivo, levando várias das lideranças negras à prisão. Entre elas, Nelson Mandela, ativista e advogado negro, preso em 1963 e condenado à prisão perpétua, mas libertado em 1989, devido à continuada pressão internacional.
No Brasil, os esforços de Zumbi dos Palmares e de toda uma legião de ativistas negros, a exemplo de Luiza Mahin, Luiz da Gama, Abdias Nascimento, Benedita da Silva e outros, não bastaram para findar o quadro brasileiro de racismo velado. A influência superlativa, entretanto, das ONGs e de centenas de militantes negros durante o processo da Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, discriminação racial, xenofobia etc., realizada em Durban, 2001, pressionou o Estado brasileiro para que viesse a assumir algumas ações concretas na direção da igualdade racial e da redução da exclusão. Deliberações posteriores, como a criação de uma Secretaria da Igualdade Racial, implantação da Lei 10.639/2003 sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas; a Lei 12.288/2010 que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades; o endurecimento da legislação anti-racista no Código Penal e outras são avanços consideráveis para uma única década (2000-2010).
Apesar de recentes avanços da chamada “década inclusiva”, o sistema econômico continua a reservar para os brasileiros de tonalidade de pele mais escura as funções de mais baixa remuneração . E o Brasil continua a figurar entre os 12 países mais desiguais, numa clara evidência de que “o racismo é um dos males mais funestos e persistentes”, conforme declaração da Comunidade Internacional Bahá’í junto às Nações Unidas.
De acordo com dados produzidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a proporção de pobres no país entre os anos 2006 era de 21,5% para brancos; e 46,7%, negros. A indigência era de 4,5% para brancos; e 11,8%, negros, evidenciando as distorções baseadas na cor da pele ainda vigentes no país. A luta pela eliminação da discriminação racial continua. Shaperville figura na história tanto como marco quanto cicatriz. O Brasil precisa continuar avançando na luta para estabelecer a Justiça e a equidade racial e, assim, fazer valer o bordão: Brasil, um país de todos.