Sílvia Barbosa*
Na cultura brasileira, e mais especificamente a nordestina, as mulheres de tradição africana do campo e da periferia, são depositárias de poderes extraordinários.
Os dons que elas expressam através de suas relações de poder muitas vezes escapam as análises racionalistas e se impõem como autoridades no meio das massas empobrecidas (GEBARA, 1991). As mulheres negras do Ilê Asé Ogum Omimkaye são encontradas dentro de uma tradicionalidade específica representada pelos cultos africanos e desenvolvem suas relações de poder assim como tantas outras, porém, durante muito tempo, ficaram esquecidas pela historiografia oficial. Trazê-las a público é lançar um novo olhar sobre a escravidão no Brasil, afirmando que os personagens femininos tiveram poder predominante – e determinante – no processo de libertação negra e legitimação da cultura africana em solo brasileiro.
Este artigo é fruto de leituras da disciplina Estudos de Gênero, Gerações e Estudos Raciais: Nos Estudos de Famílias Afro-Americanas, somado as minhas observações, ainda simplistas, sobre poder de mulheres no terreiro Ilê Asé Ogum Omimkaye.
O presente texto nos convoca a uma reflexão feminista de perspectiva multidimensional entre candomblé, gênero e poder. A partir da presente observação podemos afirmar que se faz necessário abrir novas discussões sobre religiosidade, pois este tema nos evidencia importantes e complexos sistemas que envolvem relações de poder, de classe, de gênero, de raça/etnia. (SOUZA, 2004)
Mas, afinal, que poder é esse? Como se dão as relações sociais e de poder das mulheres negras no Ilê Asé Ogum Omimkaye? Estas questões repercutem incessantemente, pois através delas pode-se pensar um pouco mais sobre a participação e importância da mulher nas religiões afro-brasileiras.
I – Gênero e poder na teoria social
Pensar relações de poder é pensar gênero, pois, gênero é o instrumental analítico mais apropriado para a percepção das relações sociais de poder. A categoria gênero surge de uma historiografia que trabalha com sujeitos sociais e pode ser definido, no geral, como uma teoria da diferença sexual, valorizando o aspecto relacional. Sob o conceito de gênero não só se estuda as mulheres, mas, também, a história da construção social através de papéis sociais substancialmente demarcados e desiguais (SILVA, 1998). Segundo Saffioti (1998) “mesmo nas sociedades ditas primitivas, há desigualdade de gênero”.
Nas sociedades antigas a contribuição social do homem foi valorizada e teve seu espaço na historicidade, porém à contribuição da mulher foi substancialmente desvalorizada. A partir deste fato acabou-se por não se pensar o local a partir de onde a mulher está contribuindo. Sabemos, porém, que em todas as sociedades conhecidas as mulheres detêm parcelas de poder “que lhes permitem meter cunhas na supremacia masculina e que a subalternidade da mulher não significa ausência absoluta de poder (SAFFIOTI, 1992).
Weber (1991) conceitua poder, associando, este fenômeno, a qualquer oportunidade de impor à própria vontade ao comportamento de outras pessoas, mesmo que para isto encontre resistência alheia. Para Weber, só existirá dominação como poder estabilizado institucionalmente quando houver a chance de encontrar obediência para ordens de qualquer espécie, por parte de determinado grupo de pessoas. A legitimação e a organização são dois fatores decisivos para a transformação de poder em dominação e sua estabilização. Neste caso, a dominação só pode conseguir uma base se não houver um crédito de legitimidade. Mas, ainda assim, o cotidiano da dominação só funciona enquanto organização, administração social. Por último, a carismatização e a estratégia da tradicionalização funcionam como forma de garantir a legitimação, em meio a condições, fundamentalmente mundanas nas sociedades modernas.
A lógica de poder weberiana é impositiva e pretende ser imperativa no senso comum através das táticas punitivas contra certas resistências, a exemplo do colonizador branco contra a população empobrecida. Dentro dessa concepção unilateral de conceituar poder, quanto maior a capacidade de impor tal vontade e atingir o seu correspondente objetivo, maior será o poder de um grupo sobre outro, exemplo dos povos oprimidos que articularam seus movimentos defensivos à dominação, a partir da religião.
Conforme Bourdieu (1998) o poder é representado de forma simbólica a constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e deste modo à ação sobre o mundo. Portanto, o mundo, seria o poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito especifico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer ignorado como arbitrário. Isso significa que o poder simbólico não reside no “sistema simbólico” em forma de uma força oculta, mas que se define numa relação determinada e é por meio desta que se exerce o poder e há os que lhe estão sujeito. Quer dizer, isto é na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz à crença. Enfim, para Bourdieu, o poder simbólico é uma forma de poder não declarado que se expressa e se legitima a partir também de outras formas de poder.
Arendt (1991), porém especifica que a origem do poder se localiza na resolução de juntar-se e agir em comum. O poder está na posse do grupo e continua existindo enquanto o grupo se mantiver coeso. A existência do poder é legitimada através do apelo ao passado. O poder é exercido de forma representativa e autorizado pela comunidade. Este poder corresponde à condição humana de pluralidade. A autoridade do poder é marcada de forma decisiva pelo reconhecimento comunitário e o fundamento da autoridade é o respeito manifesto. Poder é algo que corresponde à capacidade humana de agir, fazer algo, de associar-se a outros indivíduos e de agir de acordo com estas pessoas. O poder está na posse de um grupo e continua existindo enquanto o grupo se mantiver coeso.
Destacando que poder é o nome dado à situação estratégica complexa numa sociedade determinada, Foucault (1992) destaca que ele é relacional e não necessariamente é exercido de cima para baixo. Já Perrot (1992) assinala que poder no singular tem uma conotação política e designa, basicamente, a figura central do poder, mas no singular ele se estilhaça em fragmentos múltiplos e é equivalente a influências onde as mulheres têm sua parcela.
Na prática do Ilê Asé Ogum Omimkaye, o que se observa é que as mulheres ocupam posições de destaque e de poder, são sagradas em ritos específicos e ocupam lugares importantes como os de yalorixá e ekedes. Para entender como se dá a construção social de poder da yalorixá e ekedes 1 no interior desse terreiro e avaliar até onde se aproximam ou distanciam e como se manifestam as relações de gênero e poder assumidos por homens e mulheres neste espaço específico, é fundamental o uso da categoria e perspectivas de gênero. Para esta pesquisa gênero representa o instrumental analítico mais apropriado para a percepção das relações sociais de poder entre diferentes sexos e para explicar como ocorre no objeto aqui estudado uma inversão de papéis sociais significativo, isto é, o maior protagonismo feminino em uma sociedade ainda marcada pelos princípios de dominância masculina.
A categoria de gênero é definida por alguns como uma teoria da diferença sexual, e seu aspecto mais relacional nas últimas gerações de feministas ganhou maior destaque, frisando a necessidade de nos focar mais nas relações homens e mulheres do que nos pólos destas relações (estudos só de mulheres, ou estudos só de homens). É desta concepção mais dinâmica e relacional de gênero que nos interessa, não só visibilizar o poder da mulher e líder deste terreiro, mas, também, as relações de gênero que se desenvolvem neste espaço, pela identificação dos distintos papéis que homens e mulheres exercem, cargos que ocupam e sua posição nesta estrutura hierarquizada do candomblé.
II. Candomblé e o poder feminino
Leia o texto completo no PDF
{rsfiles path=”Ogum-omimkaye-desvendando-o-poder-de-mulheres-negras.pdf” template=”default”}
Fonte: NugsexDiadorim