Uma obra irregular, de 5 andares, ameaça a Casa Branca, um dos mais antigos terreiros da Bahia e o primeiro monumento negro tombado pelo IPHAN. Construída em cima de uma ribanceira, sem acompanhamento arquitetônico ou alvará, a obra invadiu o terreno tombado por mais de 2 metros, logo em cima da casa que guarda os assentamentos dos orixás Omolu, Nanã Buruku e Oxumarê. Por sua natureza irregular e pelo terreno acidentado, corre risco de desabamento. Desde o início da obra, a liderança do terreiro implora sua demolição, sem nenhuma providência.
Quando a obra começou, no final de 2019, foi logo denunciada ao IPHAN pela associação civil do terreiro. Houve uma vistoria e a obra foi interditada, mas sem efeito. Pouco depois, estourou a pandemia, interrompendo muitas atividades governamentais, inclusive a fiscalização de construções irregulares. Na ausência de medidas punitivas, o dono da obra estava à vontade para prosseguir com a construção e fez, a pleno vapor. Em 2021, a obra foi denunciada ao Ministério Público Estadual, logo gerando outro embargo. O MPE ainda pediu uma análise técnica, o que identificou risco de desabamento.

Não obstante tudo isso, a construção permanece, ameaçando os assentamentos seculares de vários orixás e pondo em risco a vida de quem transita pelo local. Mas essa invasão não é a primeira, nem a única que engoliu o terreno tombado. Faz parte de um problema crônico de construções que vem roendo pelas beiradas o território do terreiro há mais de 20 anos. As invasões anteriores também foram denunciadas ao IPHAN, mas em vão. A construção na ribanceira, a mais recente, o quadragésimo imóvel que invadiu o terreno tombado, é o mais ousado e grave, pelo risco de desabamento.
A invasão de terreno é um problema enfrentado por muitas comunidades religiosas afro-brasileiras, desde casas pequenas até as grandes casas tombadas, apesar de que essas últimas na teoria gozem da proteção do poder público. Pois a extrema lentidão dos órgãos competentes em tomar providências acaba impedindo a salvaguarda do patrimônio público afro-brasileiro. Para acabar com esse quadro, é preciso ainda implementar um sistema de fiscalização permanente. Um abaixo-assinado digital em solidariedade com a Casa Branca, lançado há poucos dias, já conta com quase dois mil assinaturas.

Matriz de inúmeras outras comunidades de candomblé, a Casa Branca, também conhecido por seu nome iorubá, Ilê Axé Iyá Nassô Oká, foi tombado pelo IPHAN e pela Prefeitura de Salvador nos anos 1980, em meio de uma luta contra outra invasão de seu terreno, por um posto de gasolina. Com aproximadamente 6.800 m2, o terreiro e suas adjacências foram tombados e ainda designados como área de proteção paisagística rigorosa. A julgar pelo número de invasões, porém, esta forte medida protetiva evidentemente não saiu do papel.
O descaso com o território físico do terreiro é apenas uma manifestação do racismo religioso que a comunidade enfrenta desde seus primórdios. Foi fundada por volta de 1830, por Iyá Nassô, alta sacerdotisa de Xangô do Reino de Oyó, na Iorubalândia, que chegou à Bahia escravizada. Segundo a tradição oral, Iyá Nassô teria voltado à África com sua filha de santo e sucessora, Marcelina Obatossi, também devota de Xangô. Pesquisas recentes confirmaram a veracidade dessa memória, ainda revelando que a volta para a África aconteceu em 1837, motivada pela repressão depois da revolta dos malês (1835). As cerimônias para Xangô realizadas na casa de Iyá Nassô foram confundidas com reuniões para planejar a rebelião e seus filhos de sangue foram condenados a oito anos de prisão. A mãe, no entanto, recorreu a várias instâncias da justiça, até o próprio Imperador, pedindo a comutação da sentença para deportação à África. Ela acrescentou que iria acompanhar os filhos, pelo amor que tinha por eles e ainda mais por não querer permanecer num país com tanto preconceito contra africanos. Nessa viagem, Iyá Nassô foi acompanhada por vários agregados, entre eles Marcelina Obatossi. Esta, no entanto, retornou à Bahia poucos anos depois, onde assumiu a liderança da comunidade religiosa, hoje conhecida como o Terreiro da Casa Branca.