Continua repercutindo a entrevista que o cantor e compositor Caetano Veloso deu a Pedro Bial, da Rede Globo, neste sábado (5), em que o artista baiano afirmou que desistira de suas posições liberais, ou “liberalóides”, como ele diz, a partir de vídeos que assistiu do professor e youtuber Jones Manoel, que lhe apresentou, entre outras coisas, as ideias do filósofo italiano Domenico Losurdo (1941-2018) contra o liberalismo, posicionando os liberais como racistas, escravagistas e apoiadores de intervenções em países periféricos, que se situam fora do eixo central do capitalismo.
São questões lógicas, ideológicas e ontológicas que estão sendo colocadas nesse debate. O professor Sílvio Almeida, Phd em filosofia e teoria geral, já havia falado sobre essa questão, do liberalismo e sua correlação com regimes escravagistas, em um longo fio em seu Twitter:
Negar a relação entre liberalismo e escravidão está no mesmo nível do terraplanismo e das campanhas anti-vacina. A escravidão moderna, de cunho racial e atrelada ao empreendimento colonial é, em grande medida, uma invenção dos liberais (segue 👇🏿).
— Silvio Almeida (@silviolual) January 17, 2020
O correspondente internacional da Globonews, Guga Chacra, foi ao Twitter e rebateu as falas do intelectual pernambucano Jones Manoel, sem citá-lo, porém. Referindo-se à entrevista de Caetano Veloso, Chacra se restringiu a chamar Jones de stalinista, tentando desqualificar o posicionamento do professor marxista com uma tirada abjetamente olavista.
Guga, porém, tomou lapadas de todos os lados, internautas criticaram seu posicionamento de que liberais não são assassinos.
Oi, liberal não é assassino. Nem os liberais no sentido econômico, como se usa no Brasil e normalmente associado à direita, e tampouco liberais no sentido político e social, como se usa nos EUA e normalmente associado à esquerda. Assassino é quem mata. Avisem o stalinista
— Guga Chacra 🇧🇷🇺🇸🇱🇧🇮🇹🇦🇷 (@gugachacra) September 7, 2020
Tiveram que lembrá-lo que os liberais estavam na linha de frente no massacre contra Kaddafi e, consequentemente, contra ao povo líbio, estavam com os estadunidenses no Vietnã, no Iraque, na Síria, no diabo.
O dado concreto é que a coisa incendiou a rede social. O debate se estendeu em longos fios no Twitter, mas Guga, que costuma ostentar um tom professoral do alto de sua base nos Estados Unidos, dessa vez se via debatendo-se com as costas grudadas nas cordas, sentindo as pancadas que vinham de todos os lados.
O professor e historiador, Jones, rebateu a fala de Chacra com ironia, disse Mister Jones:
Sentiu o golpe.
Quem destruiu o Iraque, Síria, Líbia, Ucrânia, Afeganistão e afins foi Stalin. Aliás, as ditaduras militares da América Latina foram todas feitas por Stalin rsrsrs
— Jones Manoel (@_makavelijones) September 7, 2020
Falando à Forum, Jones Manoel avalia que a repercussão de sua fala, a partir do posicionamento de Guga Chacra foi “um desvio do debate, uma vez que o Caetano Veloso em nenhum momento citou Stalin ou a União Soviética, o que ele disse foi que hoje ele tinha um respeito pelos estados socialistas e que achava um absurdo fazer uma equiparação do nazismo e do nazi fascismo com as experiências socialistas”, diz o historiador.
Na entrevista com Bial, o ex-apresentador do BBB havia feito uma correlação entre o nazismo e o socialismo, foi daí que surgiu a revelação de Caetano e a sua citação a Jones Manoel e a Domenico Losurdo, autor de Contra a História do Liberalismo. Jones lembrou que essa comparação não é nenhuma novidade no debate acadêmico, uma vez que intelectuais como Hannah Arendt, sobretudo na sua obra As Origens do Totalitarismo, já o havia feito. “A grande questão”, segundo Manoel, “foi a crítica ao liberalismo, porque no Brasil se debate tudo, mesmo o dogma liberal na política e o dogma liberal na economia”. No entanto, o professor chama essa pseudo dialogia de falso pluralismo, porque “no Brasil, onde se tem uma tradição autoritária e concentrada na comunicação”, o debate não permite sair de um quadro de referência pré-estabelecido.
Mas Jones Manoel não foge do debate, e rebate as palavras do jornalista da Globo que tenta defender o liberalismo de forma superficial e rasteira: “O Guga Chacra parte de uma visão apologética, idealista, falsa, mentirosa e cínica sobre o que é o mundo e sobre o que é, especialmente, o mundo liberal. Os governos dos Estados Unidos são os principais responsáveis pelo apoio diplomático, o apoio político, geopolítico, financeiro às ditaduras empresarial-militares na América Latina. Essas ditaduras não perseguiram liberais, não perseguiram seguidores do Adam Smith ou do John Locke, elas perseguiram comunistas, anarquistas, socialistas, trabalhistas… as ditaduras militares foram feitas contra as esquerdas, com apoio do campo liberal interno de cada país, e com o apoio da principal pátria representante do liberalismo que são os Estados Unidos. Antes do golpe militar no Brasil, os estadunidenses apoiaram um golpe na Indonésia que matou um milhão de pessoas, o bioma do país foi modificado, tinha tantos corpos nas ruas e nos rios que a dinâmica ambiental foi alterada”, esclarece o professor. “O liberalismo nasce atrelado à defesa da escravidão e à defesa do colonialismo e com a defesa dos processos de colonização de África, de Ásia…”
Manoel acredita que na verdade o que se pretende é barrar as críticas acadêmicas, sérias e fundamentadas ao liberalismo e usam o espantalho do stalinismo pra barrar essa crítica.
Jones ressalta que não houve nenhuma crítica séria à fala de Caetano e tampouco à obra de Losurdo, ninguém pegou um único livro do filósofo, que tem mais de 26 obras publicadas no Brasil, e tentou contestar as ideias contidas nelas, que se faz é um discurso vazio, arredio e insustentável. Jones também não deixa de ver um pouco de covardia na crítica de Guga: “É no mínimo estranho, pra ser simpático, que Caetano Veloso dê uma entrevista citando um autor italiano e dizendo que o meu papel foi mostrar a ele os argumentos do autor italiano, e só eu apanhe”.
Muita gente achou que Guga foi racista ao escolher o seu alvo num garoto negro; no tiro ao alvo, o alvo geralmente é preto. Manoel diz sobre isso que estranha “não aceitarem que um dos maiores ícones da cultura popular brasileira e latino-americana tenha como referência intelectual um professor da rede básica, que não tem doutorado, que é negro, nordestino, que faz um trabalho de popularização do conhecimento e que se coloca como revolucionário”.
O dado concreto é que Jones furou a bolha em que se encontravam de um lado o MBL e de outro a Tábata Amaral (excluo aqui os cabeças brancas) como extremos aceitáveis no debate político e econômico, porque eles mantêm as coisas onde estão, e Jones é o cara que chuta a porta.
Essa histeria chacriana que se estabeleceu a partir da fala de Caetano, e que não tem Caetano como alvo, não cita as obras de Jones Manoel, não as analisa e nem fala sobre as dezenas de vídeos onde Jones, em seu canal com mais de 100 mil inscritos, faz o que chama de popularização do conhecimento; e o faz com maestria.
102 inscritos no canal. A meta desse ano, que era de 100 mil, subiu para 150 mil. E vocês sabem: vamos deixar a meta aberta e quando batermos a meta…https://t.co/l8zDuuyK6P
— Jones Manoel (@_makavelijones) September 7, 2020
Jones finaliza dizendo que o que pretende continuar fazendo é “uma crítica de alto nível, não tomar um debate fácil, pegar o liberalismo em seu contexto histórico, nos seus melhores autores e nas suas contradições, e tentar cada vez mais construir uma esquerda antiliberal, uma esquerda revolucionária, popular e anti-imperialista no Brasil”.
Manoel diz que tem uma rede de novos comunicadores marxistas fazendo esse papel e destaca o trabalho da Sabrina Fernandes – também citada e entrevistada por Caetano Veloso – além de Humberto Matos, a Laura Sabino, o Chavoso da USP etc. Manoel também acha que é urgente, além de determinar um campo discursivo antiliberalismo, questionar também o nosso modelo democrático burguês que não representam os anseios do povo oprimido, “é nessa democracia que 130 mil pessoas estão morrendo durante a pandemia, sem mecanismos institucionais concretos pra impedir o maior morticínio da história brasileira, além disso a violência policial vem aumentando durante a pandemia, o número de pessoas mortas no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Fortaleza, cresceu; então temos uma democracia que sequer protege o mais básico e fundamental, que é a vida. Esse sistema deve ser confrontado com uma proposta revolucionária, uma proposta realmente socialista, fundamentada no poder popular, com os trabalhadores e trabalhadoras gerindo a riqueza, produzindo a riqueza e a distribuindo”, finaliza o professor.
Miscigenação, conservadorismo e fascismo.
Vários autores/as do pensamento crítico, como Florestan Fernandes, Clóvis Moura e Lélia Gonzalez e outros, já destacaram como o discurso do Brasil como país miscigenado, pacífico, com integração é uma ideologia conservadora.
não é necessariamente parte de um discurso fascista. Mas não é coincidência que hoje, no 7 de setembro, Bolsonaro tenha usado esse discurso. É fundamental combater esse mito. Destacar a violência da nossa história e a resistência dos explorados e oprimidos.
— Jones Manoel (@_makavelijones) September 7, 2020
Segue o trecho na íntegra do @caetanoveloso citando @_makavelijones e Domenico Losurdo ao vivo em horário nobre na Globo. Acho bonita a capacidade do Caetano, após os 70 anos de mudar de ideia em relação ao liberalismo. Leiam Losurdo. (1/2) pic.twitter.com/gjCSuZxmhZ
— Afrofreestyle (@afrofreestyle) September 5, 2020
Lelê Teles