Entrevista a Jô Húngaro
Caminhos para a Política Cidadã no século 21
Em meio a críticas e esperanças, pensadores e ativistas debatem como superar crise da representação e reinventar democracia.
Alguns clichês insinuam-se sempre, quando se debate – entre a chamada “classe média” – o cenário da participação política no Brasil. “O país está apático”. “A juventude não sai às ruas”. “Os movimentos sociais foram cooptados”, afirma-se. Quase sempre agregam-se queixas sobre o “baixo nível do ensino”, atestado pelo mal desempenho dos estudantes brasileiros em testes que avaliam certas habilidades consideradas essenciais.
Será mesmo verdade? Para a pesquisadora e webativista Drica Guzzi, que atua na Escola de Futuro da USP e coordenou projetos como Acessa Escola, Acessa SP e a rede de formação do Telecentros.BR, quem sustenta os pontos de vista acima está olhando o mundo com óculos errados; não compreendeu que, em face de mudanças civilizacionais profundas, também Política, Comunicação, Cidadania e Educação precisam ser pensadas em outras bases.
Entre as relações humanas que se transmutam, argumenta Drica, estão o próprio pertencimento a grupos sociais e a cooperação – essenciais à natureza humana, como lembrou Ricardo Abramovay, um dos entrevistados desta série. Antes das comunicações globais em rede, o universo de opções para a solidariedade era limitado: uma família, uma empresa, uma igreja, um partido político, um sindicato. Mas que terá mudado, no comportamento dos indivíduos e sociedades, a partir do momento em que se tornou possível participar de redes mundiais para desenvolver um software, construir um verbete complexo na Wikipedia, organizar um novo movimento social ou produzir e enviar este texto a você?
Tudo se transforma – a começar da Política –, argumenta Drica, autora do livro “Web e Participação: a democracia do século XXI”. “As instituições da democracia representativa e do capitalismo financeiro não expressam mais as realidades, o desinteresse pela esfera institucional é consequência”, diz ela. Porém, “surgem grupos com interesses específicos, que se mobilizam (…) Na medida em que as pessoas se conectam, vivenciam compromissos. Que não são estáveis, nem permanentes, mas abrem espaço para todo tipo de debate e participação. De repente, cria-se uma adversidade, uma situação que eclode – e as pessoas se organizam e conseguem uma mudança (…) Juntam-se, participam e depois a coisa se desfaz”.
Que valores estarão por trás desta grande novidade política? Para Drica, ao menos alguns deles têm forte sentido contra-hegemônico: colaboração (“eu faço um pedacinho [de um software ou um projeto]; outra pessoa vai fazer outro pedacinho”); autonomia (“me interesso e por isso vou atrás, não preciso esperar por ninguém”); o apreço pelos bens comuns da humanidade; a valorização da liberdade e responsabilidade (expressas por exemplo no maior uso das bicicletas e na preocupação com segurança para elas nas avenidas); o desprezo pelo consumo alienado (“evidenciando o não-consumo e a preocupação com a natureza”).
Diante deste novo cenário, poderia a educação continuar preocupada fundamentalmente com “níveis” ou “índices”, os velhos parâmetros de desempenho e compromisso? Claro que não, opina Drica. “O jovem pode não estar organizado, mas está conectado. (…) Quando se interessa por algum assunto específico, tem mais capacidade de se desenvolver que antes (…) Valoriza quem conhece – não porque é velho, mas pelo mérito e experiência que a pessoa traz. (…) Pratica troca entre iguais”.
A escola atual não consegue, é claro, lidar com isso. Mas o caminho para recuperar o terreno perdido não é perseguir velhos índices de “sucesso” – e, sim, revisar a si mesma, buscar conexão com os processos sociais mais dinâmicos e inovadores.
“Por que queremos uma escola tão conteudista – informações, conceitos de linguagem, ciência e artes selecionados e ordenados linearmente, obedecendo hierarquias, para serem reproduzidos aos alunos num determinado tempo? Por que um conteúdo programático tão pesado? Como alternativa, Drica sugere perceber que “os estudantes estão aprendendo a viver, a pensar junto, a ter opinião”. Seria um erro absurdo desperdiçar esta novidade, em novo de velhas noções de Ensino e Política.
A entrevista de Drica Guzzi vem a seguir. Como os demais diálogos desta série, ela foi produzida no âmbito da pesquisa “Políticas Cidadãs – Reflexões e Caminhos”, produzida pelo instituto Ideafix por solicitação do IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade (A.M.)
Gostaria que você falasse um pouco sobre a Escola do Futuro da USP.
A Escola do Futuro foi fundada em 1989, em um momento em que a tecnologia estava avançando e os estudos das neurociências também. Ela nasceu como um núcleo de apoio à pesquisa para pensar o processo de aprendizado e a comunicação, que são camadas próximas. A Escola tem essa vocação investigativa, formadora de novos olhares e novas políticas, sempre com esse viés mais público.
A internet começou a ser comercializada no Brasil em 95. A partir de 98 vimos que as novas tecnologias iriam de fato mudar o modo como a gente aprende, resolve questões, troca informações. Ficou claro que as leis de mercado são muito imperativas, que só iria ter acesso quem pudesse pagar, que era privilégio para poucos. Os governos foram percebendo que havia uma demanda, caminhando para o pensamento de que o acesso à banda larga de qualidade deveria ser um direito do cidadão.
O Brasil avançou nos últimos anos quanto ao aumento de acesso à internet, mas há muito ainda o que fazer. Praticamente metade da população não tem acesso. Nas áreas rurais isso é ainda mais preocupante. E obviamente não falo só do acesso, mas do uso qualificado de todas as possibilidades que estar na rede traz.
Desde então o campo da “inclusão digital”, nome que surgiu só em 2000 ou 2001, vem se estabelecendo como um campo de reflexão, desenvolvimento, soluções e conceitos, em relação à apropriação de tecnologia a serviço pessoal, profissional e da comunidade.
Nesse caminho, comecei a trabalhar no Acessa São Paulo, que é a política pública de inclusão digital do estado de São Paulo, que logo foi se ampliando para outros projetos de cultura e aprendizagem digital. Fizemos com o governo federal a Rede de Formação do Telecentros BR, no Brasil todo, com a Coordenadoria da Juventude de São Paulo um projeto de ativação dos jovens em rede, entre outros tantos projetos.
Normalmente a Escola do Futuro – USP entra como co-responsável pelo desenho estratégico dos programas, desenvolve e implementa a formação dos atores envolvidos (monitores, lideranças, gestores, projetistas, facilitadores, entre outros), curadoria e produção de conteúdos, desenvolvimento e acompanhamento dos portais e das redes sociais, pesquisa e mapeamentos do impacto e usos das tecnologias de informação e de comunicação bem como processa os indicadores de desenvolvimento e apropriação da tecnologia. No fundo, o que mais nos interessa não é a tecnologia em si, mas suas consequências e efeitos na sociedade. O conhecimento livre; projetos que envolvam a ativação de redes – o compartilhamento, a colaboração e a ação coletiva – são focos de nossas investigações e produções.
Existe uma forma correta de utilização de redes hoje que está sendo pensada, estruturada?
Uma questão é muito forte: o tipo de acesso determina o uso. Uma coisa é acessar meia hora a cada duas semanas, outra é ter acesso à banda larga de fato, cinco dias por semana. O tempo de uso afeta a apropriação.
Muita gente diz que as pessoas só falam besteira nas redes sociais, que os jovens não conseguem manter a atenção. Essa é uma descrição das inúmeras possíveis. Hoje vivemos um problema na educação formal, especialmente a dos jovens do ensino médio, na faixa, entre 15 e 19 anos. O formato da escola é muito pouco atrativo. Não que os jovens não queiram aprender coisas novas e desenvolver habilidades e conhecimentos. É claro que querem. Mas a escola está ocupando muito pouco esse lugar do interesse, da motivação para aprender.
Jovem quer se sociabilizar e isso é fundamental para o processo de desenvolvimento de sua subjetividade, da consciência de si, seus interesses e vocações. Para isso tem que conhecer, experimentar, investigar, testar, se posicionar, receber feedback, principalmente de seus pares – e infelizmente a escola que conhecemos não é mais o espaço fundamental para isso. Aulas de 50 minutos, 15 disciplinas, professores que “passam o conteúdo”, acabam instigando muito pouco os jovens a quererem aprender mais.
Já é hora de percebermos que nem tudo que é novo é bom, e nem tudo o que é antigo tem que ser preservado. A questão da atenção, de estar em 20 janelas – o jovem hoje faz tudo ao mesmo tempo – isso com certeza influencia os processos cognitivos. Nunca se teve tanto acesso simultâneo à informação que hoje é multimídia: abrange a escrita, o vídeo, o áudio, o desenho. Muito estímulo, muitas fontes.
Mas não basta ter acesso à informação para se ter um aprendizado. A capacidade de selecionar e os critérios de seleção são também recursos cognitivos. Buscar, comparar, analisar, estabelecer uma visão crítica, discernir, fazer sínteses. E, com os dispositivos digitais, você precisa processar e ter uma produção para apropriar-se de alguma coisa. Precisa criar sentido a partir de um repertório próprio. Dominar – tecnicamente inclusive – esses meios não é uma questão secundária. Desenvolver uma ideia faz parte do aprendizado. Sempre fez. Mas se antes você tinha um professor como principal fonte e referência, hoje você tem 300 fontes, opiniões e compartilhamentos de inúmeras naturezas. Lidar com esse contexto, de estar em rede numa alta densidade informacional e relacional, exige certa “sustentabilidade emocional”, para se manter sem se desorganizar.
Quais os temas, hoje, que levam os jovens a buscar informação e a se mobilizar para uma participação coletiva?
Vivemos numa sociedade em que as pessoas têm mais poder de decisão. O jovem pode não estar organizado, mas está conectado. Isso talvez esteja criando um sentido novo à questão da solidariedade. Percebemos pelas pesquisas que as crianças e adolescentes – desde o ensino fundamental, mas principalmente do ensino médio – quando têm interesse em algum tema ou assunto específico têm hoje mais capacidade de se desenvolver do que antes, porque vão atrás.
Os interesses são variados. A cultura permeia muito a vida deles, seja a música, o teatro, a dança, a literatura, a poesia. Tem também a questão do reconhecimento: o jovem hoje reconhece quem conhece – não porque é mais velho, mas pelo mérito, pela experiência que a pessoa traz. E tem também a troca entre iguais (pares), com que a escola não está sabendo lidar.
Veja, por exemplo, o que esta acontecendo com o caso da menina Isadora, de Florianópolis, de 13 anos, que criou uma página no Facebook chamada Diário de Classe. Sua intenção, conforme ela diz, foi a de mostrar a verdade sobre as escolas públicas. Criada em julho passado, esta página, no final de setembro, já contava com mais de 320 mil pessoas que apoiavam (curtem) a iniciativa. A ideia, que tem mostrado muita eficácia, é simples: com o celular ela foi batendo e publicando fotos das instalações da escola em que estuda. Ela mostra paredes sujas, portas sem fechadura (que assim que publicadas foram trocadas por novas), vaso sanitário sem tampo, a merenda, as aulas, enfim, sobre várias questões do dia a dia escolar.
Não é preciso dizer que muitos grupos de alunos, inspirados na ideia de Isadora estão replicando e conseguindo mudanças em suas escolas. Soubemos de um caso na zona oeste de São Paulo, que o edifício da escola foi interditado por certo período de tempo, no mês passado, para passar por uma reforma (depois de compartilhadas inúmeras fotos num blog).
É desse tipo de jovens que estou falando. Usando a tecnologia, muitas vezes descobrem o que querem e o que podem fazer e se ajudam muito. Com os pares, começam a frequentar comunidades, desenvolvem uma comunicação útil, funcional. Trazem a questão da colaboração mais presente que as outras gerações. Ou, melhor dizendo:estar em rede torna mais fácil colaborar.
Talvez a generosidade humana e o espírito colaborativo sempre tenham existido nas práticas dos centros comunitários locais, associações de classe, religiosas ou de bairros, por exemplo, mas agora, com os dispositivos móveis conectados, ficou mais fácil exercitar realmente uma participação mais distribuída, menos formal. O comportamento mais coletivo e colaborativo é consequência das oportunidades que nossa época traz. Não é à toa que estão aparecendo os projetos de “multidão conectada”, como os crowdsourcing, crowdfunding etc. A tendência é essa. As pessoas em rede, voluntariamente, se juntando para apoiar, desenvolver uma questão de interesse comum e depois se separando. É um novo jeito de desenvolver projetos, criar soluções, resolver problemas, aprender e fazer circular. É a força do coletivo impermanente.
É também a lógica de projetos hoje bem estabelecidos e conhecidos entre as pessoas, como o Linux (Software Livre), a Wikipedia etc. É a chamada cultura digital: “eu faço um pedacinho, outra pessoa vai fazer outro pedacinho”. Isso gera uma potência, uma sensação de autonomia do tipo: “me interesso por isso e vou atrás, não preciso esperar por ninguém”. Porém, essa autonomia, por um lado é fundamental para inovar e criar soluções, por outro pode gerar certa carga de arrogância por parte de alguns jovens e, no excesso, gerar uma percepção mais de onipotência do que de potência criativa.
Essa característica criaria um distanciamento da política, já que a resolução dos problemas da sociedade é distante e para isso ele não tem autonomia?
Estamos numa época de transição rumo a formas mais múltiplas, polifônicas, de participação. Esses relacionamentos múltiplos estariam gerando uma consciência que não é, como no passado, uma consciência de classe, de pertencimento a um partido, mas sim uma consciência de que cada um tem que se mover, de vez em quando, por certas causas.
Essas causas são tão diversas quanto são os interesses humanos. São motivações que podem não ser as mesmas sempre, nem para todos, e nem estão dadas de uma só vez. A última eleição presidencial foi a que mais usou a internet. Mas a qualidade da conversa foi sofrível, muito aquém do que se esperava. É como se fosse uma guerra de torcidas: xingamentos, gritarias, difamação. A ampliação do debate ou sofisticação positiva foi zero. Mas percebi uma coisa na população mais jovem: por mais que tenha sido um jogo de torcidas e que o jovem ache que não tem nada a ver com isso, que “esses caras estão por fora” – houve mais informação circulante na internet, e, portanto, ele ficou mais próximo desse contexto. Não é uma televisão ou rádio que ele desliga, a informação circula nas redes dos amigos, dos amigos dos amigos, gera comentários, compartilhamentos, reações. A política ficou mais próxima dele.
Outras formas de se fazer política também começam a aparecer, micropolíticas em rede. A informação aberta, acessível a todos em tempo real, permite que cada um selecione, compartilhe, discuta. Estamos, portanto, confrontados com questões que desafiam a sociologia, a filosofia, a política. E, de vez em quando, por caminhos imprevistos, o debate converge e leva a ações coletivas.
O que motiva os jovens a irem para a rua ou a discutir na internet alguma ação?
O nível de participação é variável. A mobilização se dá em cada momento, em relação a um determinado tema. Os jovens querem descobrir por eles próprios. E eles estão ligados, conectados, percebendo as coisas. Você tem que aproveitar isso para as causas. Tem uma moçada com uma percepção mais clara da questão ambiental, de que se a gente continuar esse consumo desenfreado, não vai dar. A questão do meio ambiente é mobilizadora. Duas gerações atrás, o consumo era a questão. Agora, está mais evidenciado o não-consumo, essa preocupação com o planeta. Por exemplo, mecanismos de liberdade e de responsabilidade, como o maior uso das bicicletas e com mais segurança, nas avenidas, por exemplo.
E quanto aos valores que norteiam nossa sociedade?
Estamos em um momento de mudanças. Começam a caber valores do coletivo, mais solidários ou mais conscientes dos “bens públicos globais”. A liberdade para empreender e criar toma lugar da estabilidade e segurança. A incerteza não imobiliza, gera a percepção de muitas possibilidades. Filhos estão mais preocupados em cuidar do planeta do que seus pais. A gente saiu de uma sociedade industrial que promoveu certos valores, mentalidades e comportamentos. Hoje, alguns comportamentos não servem mais. Não é inteligente consumirmos desse modo, essa conta não fecha. Não sabemos o que fazer com o lixo que geramos. É claro que estamos em meio a múltiplos interesses de grupos poderosos, que não querem mudar, mas isso está na pauta do jovem. Talvez de forma crescente: as crianças estão vindo com mais discussão. É uma pauta coletiva mundial do jovem.
Sobre a questão da cidadania, você percebe mudanças?
A cidadania, no século XXI, terá um certo individualismo, no sentido da autonomia. Uma sociedade com menos instituições e mais liberdade para criar associações. É quase um paradoxo: as pessoas ficam menos institucionalizadas, coletivizadas na instituição; há uma certa individualização, ao mesmo tempo em que se amplia a capacidade de ação coletiva – que é a aliança como condição de conquistas. São camadas, duas dimensões que caminham juntas. A despeito da existência de estruturas, de uma ordem estabelecida, as pessoas estão se conectando por sua própria iniciativa. No passado, o compartilhamento se dava por estruturas mais organizadas, pertencimentos institucionais. Essa possibilidade de conectar e desconectar atinge todas as relações, sejam de laços fracos ou fortes.
A internet tem também muito lixo. As pessoas produzem muita besteira, ao lado de coisas maravilhosas. Tudo faz parte de uma mesma produção. Ter contato com isso é ter contato com nossa humanidade. Conseguir conviver com esse grande espelho que é a internet é um avanço, uma tomada de consciência.
Por que, de repente, uma notícia fútil ecoa mais do que outra mais importante?
Isso passa pelo ser humano, claro que um ser humano socialmente construído, em um contexto cultural. Vivemos a cultura da celebridade; há também o efeito da publicidade e das imagens que nossa sociedade produz e consome – uma força motriz que inocula o vírus da necessidade. Construímos uma sociedade que acredita na fofoca e no julgamento da vida alheia.
O Butão, um país que tem o índice de felicidade [FIB – Felicidade Interna Bruta, em substituição ao PIB], justamente, lá não tem televisão. Voltei agora do Japão, e a noção de coletividade deles ficou muito forte para mim. O povo japonês tem crenças milenares, passadas de geração a geração, que alimentam condutas. A gente também tem uma herança cultural potente, que é a mestiçagem – essa mistura é um ativo cultural muito bacana. Convivemos com o diferente com certa facilidade, e esse jeito de se abrir ao outro, essa alteridade, me parece muito relevante.
Como é o acesso à banda larga na rede pública, hoje?
Tem o PNBL – O Programa Nacional de Banda Larga, que ‘e o Programa para universalizar o acesso a banda larga, um Programa enorme, mas ainda com muitos problemas. O acesso via escola está aumentando, mas isso não quer dizer tanta coisa, depende de como a escola está pensando. Tem escola que desenvolveu uma cultura mais investigativa, mais participativa, solidária, então é ótimo que esteja com computadores nas salas de aula e com conexão.
A escola saiu da vida da sociedade. Por um lado é lugar de certa proteção, um espaço especial, o que é positivo. Por outro, se isso vira isolamento, um descolamento dos processos da vida, essa escola não faz sentido. Por que queremos uma escola tão conteudista? São informações, conceitos de linguagem, ciências e artes selecionados e ordenados linearmente,obedecendo hierarquias, para serem reproduzidos aos alunos num determinado tempo. Por que um conteúdo programático tão pesado? Para quê, exatamente? Os estudantes estão aprendendo a viver, a pensar juntos, a ter uma opinião: é uma baita disposição para descobrir coisas. Isso pode ser canalizado, potencializado, para processos de pesquisa espontânea, de modo que o conhecimento a ser adquirido seja reinventado pelo aluno, ou pelo menos reconstruído. Que sejam produzidas as “subversões”, versões singulares e desviantes das “versões oficiais”.
A escola precisa sacar que tem uma força política, inclusive, para questões mais amplas. Claro, há todo um campo de saber. Seria um absurdo imaginar que, sem uma orientação voltada para a tomada de consciência de questões centrais, possa o aluno chegar, apenas por si, e elaborá-las com clareza. O professor aí tem um lugar fundamental. Tem um conhecimento acumulado que deve ser respeitado. A lógica ajuda a pensar, a fazer pontes. A humanidade tem um acervo à sua disposição, mas precisa conseguir acessá-lo.
No começo da inclusão digital, as lideranças comunitárias questionavam a razão pela qual a criança de Taboão, da Brasilândia, e a criança do Morumbi estavam no mesmo lugar, o Orkut. O moleque do Morumbi, que tem acesso a tudo, estar no mesmo “lugar” que o menino da periferia, era um contexto novo, não existia. Se tivermos um olhar elitista ou moralista,do tipo “o que ele está fazendo lá, devia estar olhando sites de emprego”, a gente não enxerga o que está acontecendo, que é essa abertura de possibilidades criativas, participativas e coletivas. Compartilhar, colaborar e agir junto esta muito mais fácil.
Algum movimento chamou sua atenção recentemente, aqui ou fora do país?
Desde maio de 2012, passou a vigorar a Lei de Acesso à Informação, que determina, segundo o site oficial de dados abertos do governo, que todos os órgãos da administração direta e indireta devem estar preparados para fornecer ao cidadão qualquer informação que seja considerada pública, sem que haja justificativa para tal solicitação, num prazo de vinte dias. Isso inclui seus dados, seus processos, editais, aplicação dos recursos públicos.
No Brasil, antes da lei, já existia um movimento que acompanho de perto, o Transparência Hacker, que milita na transparência das informações públicas, dados abertos e participação social principalmente sob a dinâmica do protagonismo em rede.
Os dados estão ali, em formato aberto, disponíveis para serem acessados, cruzados, recombinados e visualizados. Se alguém resolveu cruzar aquela base de dados com outra e teve uma visualização que ninguém tinha tido, isso agrega camadas de inteligência ao processo.
É uma oportunidade deste momento em que vivemos. Os jovens se engajam nessa questão de transparência, do acesso e cruzamento de dados. Esse jeito de funcionar menos estruturado vai bem com essa geração. É aproveitar e usar isso a favor de um certo plano de nação.
Você acha que isso tudo pode gerar uma nova forma de fazer política?
A gente está tendo, não só no Brasil, vários exemplos da força de mobilização desse coletivo. Cada vez mais volta a existir essa micropolítica, pequenos grupos com interesses específicos que se mobilizam. De alguma forma, as instituições políticas da democracia representativa e do capitalismo financeiro não expressam mais as realidades emergentes das sociedades. E, então, o desinteresse pela esfera institucional é uma consequência. Não adianta só a população participar a cada quatro anos. Cada vez mais esses mecanismos de escuta precisam ser múltiplos, é muita informação. A capacidade de escutar, incluir a escuta no ciclo de uma política pública, e fazer devolutivas, também faz parte desse jeito de fazer política. A questão é, de novo, a transparência dos dados, uma governança mais colaborativa. Já não se trata mais de saber se é necessário ou não, mas sim quando e como os governos vão começar a implementar essa política. Ou entendem isso e saem na frente, ou vão ser atropelados.
Há também os formatos menos processuais e mais “acontecimentos”. Mais impermanentes, zonas autônomas temporárias. Na medida em que as pessoas se conectam, vivenciam compromissos. Que não são estáveis, não são permanentes, mas abrem espaço para todo tipo de debate e participação. O debate é pluritemático e intermitente. Isso gera um novo espaço público em que nada está pré-definido. De repente, cria-se uma adversidade, uma situação que eclode – e as pessoas se engajam e conseguem uma mudança. Seja um manifesto iniciado na rede, que influencia a opinião publica, seja a reação à violência de governos autoritários, cada vez mais teremos esses agenciamentos, em que as pessoas se juntam, participam e depois a coisa se desfaz. As tecnologias oportunizam essas ações. Mas isso também é exercício, é prática, não acredito em mágica.
Como os professores se posicionam diante disso tudo?
Vejo alguns professores animados, abertos a essas novas possibilidades e com potência de ação. Mas há também professores que reverberam o discurso da falta, da reclamação. A situação não é simples mesmo. Em 2009 participamos de um projeto em que implementávamos laboratórios de internet nas escolas, com acesso livre e projetos comunitários. Era uma proposta ousada, em que misturavam-se alunos, professores, gestores, funcionários e a comunidade do entorno. Havia um discurso muito forte de que o professor estava resistente à internet, que ela era uma ameaça etc. Então fizemos o caminho contrário: fomos para a internet tentar achar a escola, o professor, alguma presença na rede. Foi uma quebra do discurso homogêneo: em um universo de 498 escolas, havia a presença na rede de 257 escolas, mais da metade: um professor de ciências que tomou a iniciativa e colocou referências bibliográficas num site, um grupo de alunos que montou um blog da escola, uma professora que compartilhou suas aulas. Tem coisas legais acontecendo, precisamos é de mecanismos de escuta e mapeamento que consigam identificar essa diversidade, senão fica tudo numa régua só. Mas os professores usam mais as tecnologias e a rede em suas vidas pessoais e em contextos administrativos e menos com seus alunos.
Quais os modelos que funcionam e o que falta ser feito?
A própria rede está dando dicas de como ela funciona. Há mais liberdade, menos controle, as pessoas se engajam para atravessar certos interesses. É um convite ao engajamento voluntário, mais do que todo mundo fazendo a mesma coisa. É “de vez em quando” e na pluralidade de causas. Sempre vão existir os que não participam e, mesmo que queiram participar, não têm a habilidade com a tecnologia: as plataformas, os dados abertos, a capacidade de processamento de informação, que facilitem a participação de quem conhece mais. Será necessário pensar em uma governança compartilhada, em vários níveis. Esse é o desafio, essa é a pauta dos próximos dez anos. É também, simultaneamente, o co-surgir de um olhar mais integralizador de toda a humanidade e a natureza.
Fonte: Outras Palavras