Lola Aronovich – Feio é o seu racismo

Ontem, 20 de novembro, foi o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Se temas como racismo e orgulho negro não são discutidos com a frequência com que deveriam neste país em que não somos racistas (imagina se fossemos!), pelo menos perto da data eles precisam ser trazidos à tona. É obrigatório.

Pra mim um tópico sempre interessante é o racismo velado que existe por trás das convenções de beleza. Poucas pessoas assumem que foram e continuam sendo condicionadas a achar que o belo é ter olho claro, cabelo liso e de preferência loiro, traços “finos”, e pele branca com um pouco de bronzeado. A galera que acha sexy os lábios carnudos da Angelina Jolie parece achar horríveis os lábios carnudos de tantos negros. Mas essa gente nunca assume seu racismo. Diz apenas que é uma total coincidência não gostar de negros. É só seu gosto pessoal, puxa vida! Que, obviamente, não sofre influência alguma do meio onde vive!

Outro dia vi a prévia de um documentário americano chamado Dark Girls (Meninas Escuras). Nele, uma mulher negra diz se lembrar de pedir pra sua mãe colocar alvejante na água da banheira, para que ela pudesse embranquecer. Outra negra conta que os negros americanos preferem negras mais claras, e fazem divisão entre mulher pra transar, e mulher pra casar (só as menos escuras). Claro, porque os negros também fazem parte de uma cultura que prega que a beleza é clara. E isso se aprende desde criancinha. O comediante Chris Rock decidiu fazer o documentário Good Hair (Cabelo Bom) depois que sua filha de seis anos chegou da escola perguntando por que ela não tinha cabelo loiro e liso, como deveria ter se quisesse ser bonita (e que menina não quer ser bonita? Faz parte da nossa lavagem cerebral de todos os dias).

Ano passado vi um documentário de 17 minutos, The Colour of Beauty (A Cor da Beleza), que acompanha uma modelo negra nas suas tentativas (a maior parte frustradas) de conseguir trabalho. Os dados são que 87% das modelos no New York Fashion Week são brancas, a maior parte loiras. 6% são asiáticas, e 6% são negras. Mas as negras são o mais brancas possível. Um agente as descreve como “brancas banhadas em chocolate”. Elas devem ter as mesmas características das brancas e serem clarinhas. Nada de nariz ou lábios grandes ou cabelo afro. E quanto ao corpo, se tiver bumbum ou quadril um pouquinho maior, tá fora. Não há diversidade nas passarelas da moda, sabemos disso.

Aqui no Brasil, país em que até em Salvador (onde 80% da população é negra ou parda) comercial de margarina é protagonizado por loirinhos escandinavos, o Ministério Público instituiu, em 2006, uma cota obrigatória de 10% de modelos negras. Os estilistas chiaram. Além do manjado “não somos racistas”, alguns chegaram a dizer que a cor negra não combinava com uma indústria de roupas luxuosas. A cota de 10% acabou ficando mais como “sugestão”. E sugestão pode muito bem ser ignorada. Na São Paulo Fashion Week deste ano, por exemplo, quase todas as marcas só tinham modelos brancas. As marcas mais inclusivas traziam duas negras num batalhão de 26 modelos.

Enquanto isso, um grupo de ativistas negras protestava do lado de fora, exigindo que a cota fosse aumentada para 20%, para que o Brasil parasse de fingir ser o fiel proprietário de uma beleza suíça. Cantavam elas: “Eu vi a luta, estava lá, SP Fashion Week não deixa negro entrar!”. Que frescura, né? Afinal, se mal vemos negros nas passarelas, no concurso Miss Brasil (nenhuma candidata negra; até a Miss Bahia era loira, mas tingiu o cabelo de castanho porque sentiu vergonha), nos comerciais, em qualquer lista de mais belos, é porque… hum, por que mesmo? Ah sim, deve ser o gosto pessoal de toda uma nação!

Já faz um tempinho, uma leitora minha, a D, lembrou que, quando era criança, participou de um concurso de beleza na escola. Numa festa, os meninos montaram uma passarela de cadeiras para que as “meninas bonitas” desfilassem, sendo saudadas com gritos de aprovação pela plateia masculina. Conta D: “Eu, achando que os padrões não eram tão rígidos assim (afinal, vários adultos já tinham me dito que eu era uma criança ‘bonita’), e ávida por ter aquela aprovação e me confirmar como parte do grupo das ‘bonitas’, me arrisquei a desfilar, com meus cabelos longos cacheados e minha ‘cor de jambo’. Subi na tal passarela e logo a abandonei aos gritos de ‘sai daêee’, ‘nega da favela’, ‘cabelo pixaim’, etc. Naquele momento eu entendi o significado de MUITO feia. Era a questão da cor que definia tudo. E a questão da cor estava intrincada com a questão de classe. Ser feia era ser negra, ser negra era ser pobre”.

Bom, se este depoimento e os três documentários não te convencerem que o padrão de beleza é racista, sempre temos aqueles vídeos de cortar o coração em que os pesquisadores pedem pra crianças negras de três, quatro anos apontarem qual é a boneca feia (é a negra), qual a boneca burra (é a negra), qual a boneca má (é a negra). No final, a criança tem que dizer com qual boneca mais se parece, e ela sabe que é com a negra. Como deve ser crescer com uma autoestima dessas? Crer que a pele que habitamos é inadequada tem força pra afetar todas as nossas atividades. Odiar a própria aparência rapidamente se espalha para odiar o próprio ser, em tudo que ele representa (não só na sua aparência).

O Dia da Consciência Negra é uma data pertinente pra nos lembrarmos daquele slogan dos anos 60 que, a meu ver, não deveria ter saído de moda: black is beautiful. E serve para pensar no Zumbi, um herói nacional que lutou pela liberdade. Já passou da hora da gente se livrar das nossas amarras. Ao adotarmos um padrão único de beleza, todos saímos perdendo.

Mas, se todas essas evidências não adiantarem, fica a dica: não use mais o discurso de “gosto pessoal” pra justificar seu racismo. Fica feio.

Fonte: Escreva Lola Escreva

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