Nada na operação da Polícia Federal ontem chamou mais a atenção que o envolvimento da alta cúpula militar do governo Jair Bolsonaro na trama golpista. As evidências da participação, sobretudo, dos generais Braga Netto e Augusto Heleno, ministros de Estado, e do almirante Almir Garnier Santos, comandante da Marinha, põem fim a décadas de passividade e subordinação de instituições civis às Forças Armadas. Nenhum deles foi indiciado, denunciado, tampouco julgado, mas investigações sobre uma dezena de fardados em encontros e ações contra o sistema eleitoral e a democracia são inéditas na História do Brasil. Carlos Fico, professor na UFRJ, historiador com décadas de pesquisas sobre a ditadura civil-militar, confirma:
— Pela quantidade de crimes óbvios e de rastros deixados, era esperado que a PF em algum momento chegasse a militares. A surpresa decorre da mudança nessa tradição de impunidade. Mas investigação e eventual punição de militares deveriam ser regra numa democracia, não exceção. No entanto nunca aconteceu, nem no período 1946-1964 nem após a redemocratização.
A reunião gravada de 5 de julho de 2022 pelo tenente-coronel Mauro Cid, a que a PF teve acesso, ratifica a suspeita de que o 8 de Janeiro não foi ato isolado, mas ápice de uma escalada de meses. O relatório final da CPMI dos Atos Golpistas já trazia o diagnóstico de que aquele domingo fora resultado de uma série de “hipóteses golpistas testadas”, na palavras do deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL), membro da comissão. A deputada Jandira Feghali (PCdoB), também integrante, lembra que o relatório final recomendava o indiciamento de boa parte dos alvos de prisão e de busca na operação de ontem. Jair Bolsonaro, Braga Netto, Heleno, Garnier, general Paulo Sérgio, ex-ministro Anderson Torres, jurista Amauri Saad, ex-assessor da Presidência Filipe Martins são alguns dos nomes.
A decisão de mais de uma centena de páginas do ministro Alexandre de Moraes — que, segundo a PF, foi monitorado pela estrutura paralela de inteligência instituída pelos golpistas — reproduz declarações estarrecedoras do grupo político que comandava o país àquela altura, a começar pelo presidente da República. Foi uma espécie de repetição da reunião de 22 de abril de 2020, que deu na saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça e na revelação do plano do então titular do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de “passar a boiada” para flexibilizar a legislação durante a pandemia.
O então presidente e candidato à reeleição insta ministros e membros das Forças Armadas a atuar por sua permanência no poder, em atitude de flagrante desvio de finalidade das funções do cargo, segundo a PF. Na sequência, refere-se sem pudor a medidas para tirar credibilidade de autoridades eleitorais e das urnas eletrônicas antes do pleito. Avisa sobre a reunião com embaixadores, que mais tarde o tornaria inelegível por oito anos em julgamento no Tribunal Superior Eleitoral.
Bolsonaro confirma o caráter eleitoral da PEC 15/2022, batizada, ao gosto do freguês, de PEC das Bondades, da Infâmia, dos Auxílios. À cúpula do governo menciona a votação pelo Câmara dos Deputados da lei que prorrogou o estado de emergência instituído nos primeiros anos da pandemia da Covid-19 para despejar R$ 41,5 bilhões em programas de transferência de renda a três meses da eleição.
— A Câmara deve votar hoje [acabou votando no dia 12] a PEC da Bondade, como é chamada. E não tem como, depois dessa PEC, a gente… A gente não tá pensando nisso, manter 70% dos votos, ok? Mas a gente vai ter 49%, vou explicar por quê, né? — disse o candidato à reeleição.
Em agosto de 2022, por causa da PEC, o governo retomou o pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600; corrigiu o valor e ampliou a base de beneficiários do vale-gás; iniciou repasses a caminhoneiros e taxistas. Com o aval do Congresso Nacional, Bolsonaro pôs de pé o megaprojeto de compra de votos travestido de política pública. À época, não faltou quem apontasse a ilegalidade. Mas até a base parlamentar da oposição votou a favor da PEC por medo da perda de votos. O crime eleitoral era flagrante, mas a intenção escancarada pelo presidente numa reunião de governo choca.
A democracia brasileira viveu sob ameaça nos anos do ex-capitão Bolsonaro como presidente. Ontem, tornou-se público mais um capítulo de uma história assombrosa de conspiração golpista. Que não tarde a punição dos responsáveis, militares entre eles, para que a ameaça nunca mais se repita.