Fui formada no erudito versus popular. Sendo que o erudito – o clássico, o culto – era a aspiração. O popular era o primitivo, o tosco, o incompleto. Algo a ser observado com compaixão e nada além. Ao erudito, o sofisticado. Ao popular, o simplório.
Essa formação arraigada grudou nos meus primeiros trabalhos. Passei alguns anos tentando escrever propositalmente um romance muito complicado e formal. Tanto me esmerei que consegui fazê-lo praticamente ilegível. Ou legível para meia dúzia de iniciados no new barroco literário.
Eu fugia do quê? Das frases simples, da ordem direta, das palavras mais usadas, dos parágrafos curtos. Minha intenção era que o leitor se esforçasse tanto quanto eu tinha me esforçado. Pedisse socorro ao Aurélio iguais vezes eu havia pedido. É claro que dei com os burros n’água.
Ainda não havia entendido que o complicado é diferente do complexo, e que o sofisticado é na realidade o simples. Demorei muitíssimo para compreender o que hoje me parece líquido e certo: sem comunicação não há público. Sem leitores não há escritor.
Perdi um tempo irrecuperável desprezando os autores com muitos leitores, e cultuando os autores com poucos leitores. Por quê? Estava presa à ideologia cultural de que só uns poucos conhecem e valorizam a qualidade. Enquanto a massa nada sabe.
Passei um bom bocado em frente a uma porta que não se abria. Escrevia para a tradição literária e também desejava ter leitores. Não consegui uma coisa e nem outra. Leia-se: nem a acolhida de críticos admirados por mim, nem a comunicação com o leitorado. Um desastre!
Até que um dia os bois-bumbá Garantido e Caprichoso abriram meus olhos. Salvaram a minha pele. Explico. Fui contratada pela revista da TAM para viajar à ilha de Parintins, Amazonas. Meu trabalho, ao lado do fotógrafo Ed Viggiani, era narrar os bastidores da festa dos bois.
Visitando os galpões, tanto do Caprichoso quanto do Garantido, encontrei uma fábrica de criação. Costureiras, marceneiros, eletricistas, pintores, maquinistas, ferreiros, soldadores, desenhistas, figurinistas, e segue a lista.
Um exército de criadores caprichando para garantir brilho à ópera do boi-bumbá, realizada todos os anos no bumbódromo da ilha. Fábula que o púbico sabe decorado e salteado. Mas o que vale mesmo é a variação no contar. Dito de outra forma: renovar a tradição.
Compreendi o rigor e a liberdade usados pelos artistas do boi. Percebi o talento deles em misturar. Sem cerimônia, eles ligam os pontos entre erudito e popular. Se funcionar, qualquer referência entra. Pegam o que for preciso para seduzir o público. Seduzem.
No avião de volta a Sampa, conclui que não precisava jogar fora o que havia cultuado e amado nos anos de formação. Bastava acrescentar novos elementos, vindos de onde viessem. Tinha sim um inimigo a neutralizar: o preconceito que fura nossos olhos cegando o horizonte.
fernanda pompeu, webjornalista e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé e do Yahoo. Escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.
Fonte: Nota de Rodapé