Esta semana está difícil escrever. Me sinto exausta, desanimada e por vezes desesperada com tantos acontecimentos que evidenciam o racismo estrutural e sistêmico da nossa sociedade.
A morte de um homem negro, George Floyd, por um policial branco nos Estados Unidos. Violência policial nas favelas e a morte de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos. Dos 30 mil jovens vítimas de homicídios por ano no Brasil, 77% são negros. Protestos contra o racismo nas ruas ao redor do mundo, apesar dos perigos de contaminação pelo coronavírus. A trágica morte do filho negro de uma empregada doméstica, Miguel (5 anos) ao cair do 9°andar enquanto estava aos cuidados da patroa branca.
Com tudo isso, muitas pessoas têm aderido ao “ativismo online” apoiando nas redes sociais a luta antirracista. Valorizo muito essa conscientização e movimentação. Porém, tudo isso não significa muito se a reflexão não se voltar também para dentro de cada um de nós percebendo onde em nossas vidas estamos reproduzindo o racismo. Não adianta demonizarmos essas pessoas brancas individualmente como se fossem monstros, acreditando que “os racistas são sempre os outros”.
É fácil perceber como o racismo está embrenhado na estrutura social e cultural na relação peculiar que existe aqui no Brasil dos patrões com as empregadas domésticas, por exemplo, resquício direto dos quase 400 anos escravidão.
No Brasil há cerca de 7 milhões de trabalhadores domésticos (o maior grupo no mundo), com perfil predominante feminino, afrodescendente e de baixa escolaridade.
Agora com a quarentena fica ainda mais explícita a pouca consideração, cuidado e respeito pela vida dessas pessoas, muitas das quais não pararam de trabalhar, ficando mais expostas ao Covid-19. Não à toa a primeira vítima oficial do coronavírus foi a empregada doméstica negra Cleonice Gonçalves, que contraiu o vírus de seus patrões.
Além disso, 39% dos patrões dispensaram diaristas sem pagamento durante pandemia, conforme pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva.
Toda essa realidade fica em grande parte invisibilizada e passa despercebida, pois é uma violência normalizada, estrutural e cultural, que influencia o comportamento de todos.
Miguel caiu do 9° andar do prédio onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica (durante a quarentena), devido à negligência da patroa. Foi uma triste fatalidade, que não deixa também de ser fruto do racismo estrutural, que se mistura ao classismo.
Pode não ser tão fácil identificar o racismo já que ele está normalizado, mas não é tão difícil assim, quando paramos para pensar: se o menino fosse filho de uma amiga da patroa, da mesma classe social, será que ela o teria deixado sozinho no elevador?
Imagino que ela mesma talvez nunca tenha parado para pensar sobre isso. Vejo esse comportamento como um sintoma de algo mais profundo e estrutural, que vai além do comportamento de um único indivíduo mas está na raiz do funcionamento do nosso sistema cultural e social, onde todos nós estamos mergulhados.
A desigualdade social se evidencia na diferença não só econômica mas também simbólica e subjetiva entre as classes sociais. Não dispensamos o mesmo cuidado, consideração e atenção para todas as pessoas igualitariamente. Todos nós tratamos uns aos outros (na maioria das vezes inconscientemente) de maneira diferente dependendo da classe social, raça, gênero, idade etc.
Essa falta de mutualidade fica explícita na fala de Mirtes Renata Santana de Souza, mãe de Miguel, para sua ex patroa, Sarí: “Perdi meu filho, meu único filho por uma questão de falta de paciência. Tá escutando, Sarí? Paciência. Paciência que você não teve com meu filho e que eu sempre tive com os seus. Eu amo seus filhos como se fossem meus. Eu também amava meu filho. E agora o perdi”.
Segundo a historiadora Luciana da Cruz Brito, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e especialista em história da escravidão, abolição e pós-abolição no Brasil e nos EUA, em entrevista para a BBC News Brasil: “a nossa supremacia branca é assim. Não tivemos leis segregacionistas, como nos Estados Unidos, mas temos o mesmo princípio de que algumas pessoas são mais humanas do que outras.”
Termino este texto com a definição da filósofa e escritora Djamila Ribeiro sobre o comportamento do brasileiro em relação ao racismo: todo mundo sabe que existe, mas ninguém acha que é racista.
E faço um convite para cada um de nós: olharmos para dentro e trazermos para consciência em quais âmbitos das nossas próprias vidas estamos reproduzindo mesmo sem querer o racismo estrutural, tanto em ações quanto em pensamentos e crenças.