David Morley e Bill Schwarz
The Guardian, 10 de fevereiro de 2014
Quando o escritor e acadêmico Richard Hoggart fundou o Centre for Contemporary Cultural Studies, na Universidade de Birmingham, em 1964, convidou Stuart Hall, que morreu com 82 anos, a se juntar a ele como seu primeiro pesquisador. Quatro anos mais tarde, Hall se tornou diretor interino e em 1972, diretor. Na época os estudos culturais eram uma atividade de poucos: meio século depois estão em toda parte, gerando uma riqueza de trabalho significativo, mesmo que, em sua forma institucionalizada, inclua posições intelectuais que Hall jamais subscreveria.
Os fundamentos dos estudos culturais encontravam-se na insistência em levar a sério formas culturais populares, de baixo prestígio e desenhar os fios entretecidos de cultura, poder e política. Suas perspectivas interdisciplinares recorreram à teoria literária, a linguística e a antropologia cultural para analisar questões tão diversas quanto as subculturas juvenis, a mídia popular e identidides de gênero e étnicas.
Hall era sempre um dos primeiros a identificar as questões chave da época e era cético diante de respostas fáceis. Um conferencista fascinante e professor de enorme influência, nunca se envolveu em briguinhas acadêmicas. A imaginação política de Hall combinava vitalidade e sutileza; no campo das ideias era duro, pronto para combater posições que entendia ser politicamente perigosas. Mas era infalivelmente cordial, generoso com alunos, ativistas, artistas e visitantes de todo o planeta, muitos dos quais chegaram a amá-lo. Hall ganhou loas de universidades do mundo inteiro, apesar de não se considerar um grande especialista ou scholar. As universidades lhe davam uma base a partir da qual ensinar – que lhe deu muito prazer – e colaborar com outros no debate público.
Nasceu em Kingston, em uma família ascendente jamaicana. Seu pai, Herman, foi o primeiro não branco a ter um cargo de alto escalão – contador chefe – na United Fruit Company em Jamaica. Jessie, sua formidável mãe, tinha antepassados brancos e se identificava com o ethos de uma Inglaterra imaginária e distante. Hall recebeu uma educação inglesa clássica no Jamaica College em Kingston – enquanto se aliava à luta pela independência do governo colonial.
Achava intoleráveis as restrições raciais e coloniais no país e conseguiu escapar quando ganhou uma bolsa Rhodes para estudar em Oxford. Chegou na Grã Bretanha em 1951, como parte de uma grande onda migratória caribenha que começara simbolicamente com a chegada do navio Empire Windrush três anos antes. Hall lembrava que a bordo do trem de Bristol para a estação Paddington em Londres, viu uma paisagem que lhe era familiar através dos romances de Thomas Hardy.
Mas se conhecia a cultura britânica desde dentro, nunca se sentiu parte dela e sempre se imaginou um “estranho familiar”. Em Merton College, na Oxford University, experimentou a sensação de deslocamento e seus entusiasmos – por uma nova política, pelo jazz bebop, por um mundo acordado para os valores da diferença humana – eram incompreensíveis para os gentlemen que o rodeavam, egressos de escolas particulares.
Na medida em que seu tempo na Inglaterra se prolongava, suas identificações com a negritude se aprofundavam. Ambivalente com relação aos lugares de onde partiu e de chegada procurou sobreviver a obscuridade medieval de Oxford ao aderir à causa da minoria migrante da cidade. Dessas novas ligações e o cataclisma político de 1956 – ano marcado pela invasão anglo-franco-israelense do Egito e a supressão soviética da revolução húngara – emergiu a nova esquerda, na qual Hall foi uma figura influente, que lhe deu abrigo político. A essas alturas, se sentiu “arrastado de costas para dentro do marxismo, contra os tanques de Budapeste” – e se seu marxismo era “sem garantias”, mesmo assim foi uma parte vital dele até o fim.
Essas questões se tornaram, em 1957, o catalizador da fundação da revista Universities and Left Review, em que Hall era atuante, que logo se fundiu com a New Reasoner para forma a New Left Review, da qual Hall foi o primeiro editor.
Abandonou sua tese sobre Henry James e se mudou para Londres. De dia trabalhava como professor substituto em Brixton e, até tarde da noite, na NLR em Soho. Em 1961 se tornou docente em cinema e mídia do Chelsea College, London University.
Brixton e Soho lhe eram agradáveis como Oxford não o foi e ele deu início ao seu trabalho sobre a cultura pop. The Popular Arts (1964), em co-autoria com Paddy Whannel, abriu um campo de investigação que ele desenvolveu em Birmingham.
Na marcha de Aldermaston a Londres da Campanha pelo Desarme Nuclear, em 1964, Hall conheceu Catherine Bennett e se casaram no final do ano. Com sua nomeação ao CCCS se mudaram para Birmingham, onde nasceram seus dois filhos, Becky e Jess, ficando até 1979. Durante esses anos Catherine se tornou uma historiadora prestigiada e o casamento se mostrou fonte de grande amor e apoio mútuos. Suas
casas, em Birmingham e depois em Londres, eram lugares acolhedores que atraíram seus muitos amigos.
Em Birmingham, sob a liderança carismática de Hall – e com um orçamento mínimo – os estudos culturais decolaram. Como Hoggart comentou, Hall raramente usava a primeira pessoa do singular, sempre preferindo se referir aos aspectos colaborativos de seu trabalho. Sua energia era prodigosa e ele mudou os termos do debate sobre mídia, comportamentos desviantes, raça, política, marxismo e teoria crítica.
Embora não tenha publicado nenhuma monografia acadêmica somente de sua autoria, Hall produziu uma gama impressionante de volumes de autoria e organização coletivas, ensaios e textos jornalísticos – traduzidos para muitos idiomas – assim como incontáveis discursos políticos e falas em programas de rádio e televisão.
Em 1979 se tornou professor de sociologia na Open University, atraído pela possibilidade de atingir aqueles que não conseguiram acompanhar o sistema educacional convencional. Permaneceu lá até 1998 – se tornando professor emérito mais tarde – e lançou uma série de cursos em comunicação e sociologia. Cada vez mais, focou questões de raça e pos-colonialíssimo e teorizou a visão migrante sobre a Grã Bretanha que sempre valorizou.
A mudança à OU coincidiu com a vitória eleitoral de Margaret Thatcher. Antes das eleições, convencido que o novo discurso Conservador marcava uma profunda clivagem na história política britânica, Hall cunhou o termo Thatcherism em um artigo visionário na revista Marxism Today. Lançando mão de seu longo envolvimento com a teorização gramsciana das formas de hegemonia política e do livro de autoria colaborativa, Policing the Crisis (1978), do CCCS, enfatizou o papel de raça na política de Thatcher, sobretudo com relação à profissão de fé na ordem pública que ele chamou de “populismo autoritário”.
Em The Politics of Thatcherism (1983), insistiu que o estatismo tradicional da esquerda era parcialmente responsável por criar as condições que permitiram que a ala de Thatcher ascendesse, apontando o grau de arraigamento do Thatcherism em sentimentos autenticamente populares – que achava que a esquerda não conseguira.
Isso gerou uma forte controvérsia entre aqueles que teriam sido seus aliados políticos.
Sua convicção de que o Thatcherism definiria o horizonte político por muito tempo depois que a própria Thatcher saísse do poder se mostrou clarividente e deu uma chave para entender a política não só do New Labour mas da coalizão que a sucedeu e agora está no poder.
Hall, militante da justiça racial, foi convidado a participar de muitas entidades oficiais e não oficiais. Entre 1997 e 2000 participou da Runnymede Commission on the Future of Multi-Ethnic Britain, e ficou chocado com a reação da mídia contra o comentário da Comissão que a própria ideia da Grã Bretanha estava longe de ser inocente, em termos raciais. Sabia que o pensamento racial era arraigado entre os britânicos.
Desfrutou da vida universitária, mas foi um alívio quando deixou de desempenhar um papel acadêmico em tempo integral. Essa retirada lhe apresentou uma nova oportunidade para se reinventar, nesse caso em aliança com jovens artistas e cineastas que exploravam a política da subjetividade negra. Um novo Hall emergiu, evidente nas introduções a catálogos de exposições, nas discussões em oficinas em galerias na Grã Bretanha e diversos lugares de Europa.
Novamente colaborou com – e aprendeu de – pessoas bem mais jovens do que ele próprio, como presidente de Autograph (a Associação de Fotógrafos Negros) e o International Institute of Visual Arts. Se orgulhava de ter conseguido financiamento para a construção de Rivington Place, no leste de Londres, dedicado à educação pública sobre questões multiculturais a partir da arte contemporânea e a fotografia.
Seu envolvimento com a arte negra lhe deu um novo impulso para a vida. Esse Stuart Hall foi refletido na história de sua vida e sua obra produzido em 2013 pelo cineasta John Akomfrah, na forma de uma instalação em uma galeria, The Unfinished Conversation, e de um filme de grande distribuição, The Stuart Hall Project, que chamou a atenção de uma nova geração para Hall.
Recentemente a saúde de Hall, mais precária do que admitia, deteriorou; enfrentou a diálise intensiva e, a uma idade avançada, um transplante renal. Isso lhe tirou tempo e energia e limitou sua mobilidade e capacidade de participar da vida pública. Mas até o final, recebeu em casa um fluxo sem fim de visitantes que queriam discutir com ele a política contemporânea.
Sob o governo New Labour se irritou crescentemente com o gerencialismo que esvaziava a vida pública e estava crescentemente pessimista sobre a situação global.
Mas se alegrava que “alguém com Hussein no nome” estivesse morando na Casa Branca e, depois da crise de crédito, ficou fascinado com a visão do capitalismo desandar, como que por sua própria iniciativa. Permaneceu otimista e até o ano passado, ele e seus colegas da revista Soundings produziram manifestos para uma política pós-neoliberal.
Em 2005 foi incorporado à British Academy. Sua obra inclui os livros de autoria colaborativa Resistance Through Rituals (1975); Culture, Media, Language (1980); Politics and Ideology (1986); The Hard Road to Renewal (1988); New Times (1989); Critical Dialogues in Cultural Studies (1996); and Different: A Historical Context:
Contemporary Photographers and Black Identity (2001). Todas essas obras atestam a amplitude dos compromissos intelectuais de Hall e as formas em que atravessou os diversos novos tempos de sua própria vida.
Quando apareceu no programa de rádio Desert Island Discs, Hall falou de sua paixão duradoura por Miles Davis. Explicou que a música representou para ele “o som do que não pode ser”. O que era sua vida intelectual, senão o esforço, contra todos os obstáculos, para fazer “o que não pode ser” viver na imaginação?
– Stuart McPhail Hall, professor, teórico cultural e ativista, nascido 3 de fevereiro de 1932, morto 10 de fevereiro de 2014.
Tradução: Liv Sovik