O avanço dos mandatos coletivos

A cidade com o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país tem uma história política dominada pelo conservadorismo. Em 2018, São Caetano do Sul, no Estado de São Paulo, chegou a dar 70% dos votos para Jair Bolsonaro em algumas de suas sessões eleitorais. Neste ano, a disputa pela Prefeitura se deu entre forças políticas da direita tradicional na região, vencida pelo PSDB. Diversamente de outras cidades do ABC paulista, São Caetano nunca foi governada pelo PT.

Foi exatamente nesse cenário pouco propício às esquerdas ou à defesa dos direitos sociais que a terceira candidatura mais votada foi a do coletivo Mulheres por Direitos, do PSOL. Três jovens combativas, Bruna Chamas Biondi, Fernanda Gomes e Paula Aviles, receberam 2101 votos, ultrapassando velhos dirigentes da política local. O mais votado de São Caetano integra o PSDB, partido do Prefeito, e obteve 3008 votos. A máquina eleitoral da direita e os laços conservadores não conseguiram bloquear a atuação conjunta e articulada do coletivo feminista.

A surpreendente campanha do coletivo em São Caetano não foi isolada. Sinais ainda numericamente modestos, mas qualitativamente profundos consolidaram a tendência das candidaturas coletivas nessas eleições municipais. Os coletivos podem trazer novos ventos para a desgastada democracia parlamentar brasileira, personalista, individualista, baseada no poder do dinheiro e das máquinas administrativas.

O registro da candidatura coletiva tem sido feito em nome de uma pessoa, porque a legislação eleitoral não prevê o voto em um grupo. Desse modo, os coletivos acabam se formando e escolhendo um dos seus integrantes para se inscrever formalmente na Justiça Eleitoral. Todavia, muitas dessas articulações acabam inserindo nomes nas cédulas que demonstram a característica de um mandato compartilhado, grupal ou comunitário.

Em Ijuí, 1022 pessoas votaram e elegeram a “Bruna e Coletivo Democrático”. Em São Paulo, 46267 votos foram dados para “Silvia da Banca Feminista”, 22.742 pessoas votaram na “Elaine do Quilombo Periférico”, 21.172 apoiaram as “Juntas Mulheres Sem Teto”, todas do PSOL. Em Salvador, foi eleita “Laina Pretas por Salvador”, também do PSOL. Em Curitiba, a terceira suplente do PT é a “Mandata Coletiva das Pretas”, tendo obtido 3582 votos.

Um levantamento realizado pelo Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp) da FGV demonstra que as candidaturas coletivas saltaram de 13, em 2016, para 257, em 2020. Segundo o levantamento realizado pelo cientista político Guilherme Russo na base de candidaturas do TSE, nesse pleito tivemos 99 candidaturas coletivas no PSOL, 51 no PT, 23 no PC do B, 11 no PDT, 9 no PSB, 8 na Rede, 8 no PV, 6 no DEM, 5 no PODEMOS, 5 no PSL, 4 no Cidadania, 3 no MDB, 3 no AVANTE, 3 no PP, 2 no SOLIDARIEDADE, 2 no PL, 2 no PROS, 2 no PCB, 2 no PSD, 2 no PSDB, 2 no PTB, 1 no PATRIOTA, 1 no DC, no PMB, no PTC e no PMN.

A maioria das candidaturas coletivas, mais precisamente 67,3%, está concentrada em três partidos de esquerda, o PSOL, o PT e o PC do B, mas se distribui por todo o espectro partidário. Certamente, os partidos de direita têm pouco interesse em coletivos, pois possuem um número maior de líderes personalistas e bem menor de militantes ligados a causas programáticas e a movimentos sociais. A candidatura coletiva está ligada, em geral, a finalidades públicas e programáticas. Nestas eleições, foi perceptível a articulação de candidaturas em torno do feminismo, da luta antirracista e da luta em defesa de direitos sociais de segmentos excluídos.

O que as candidaturas coletivas podem consolidar é uma maior prática deliberativa, um fortalecimento da política baseada no debate e no conhecimento das causas e propostas que serão votadas nos parlamentos. A deliberação e a participação consciente de um coletivo pode gerar uma maior qualidade dos processos políticos, mas também conflitos. Coletivos constituídos mais pragmaticamente com objetivos exclusivamente de vitória eleitoral podem não saber lidar com possíveis contenciosos e divergências. Entretanto, os movimentos sociais, os movimentos ambientalistas, as organizações populares e sindicais têm muita experiência no tratamento de divergências importantes.

As estruturas baseadas no voto individual, as redes verticalizadas que controlam os principais recursos partidários, a lógica do clientelismo, podem ser enfrentadas com candidaturas que coloquem programas e temas como finalidades, acima de nomes. Sabemos que candidatos programáticos e temáticos existem há muito tempo. Mas a luta por uma causa ou programa, em geral, vive uma tensão permanente diante da necessidade de prestígio pessoal, de enaltecimento do nome acima da finalidade que levou ao sucesso eleitoral.

Garantir o espaço político e ampliá-lo faz parte da lógica de disputa de posições no Estado, seja no poder executivo ou legislativo. A questão crucial está no peso que se dá a mudança e melhoria social ou à disputa pela permanência no espaço de poder. Em geral, a maior parte dos parlamentares cuida mais da permanência e reeleição do que dos temas e finalidades públicas. Os coletivos podem reduzir a corrupção da representação pela lógica liberal da classe política. A democracia pode ser arejada e fortalecida com os coletivos que podem minimizar a força do político profissional, do operador de esquemas de poder, do distribuidor de favores. Pode ampliar a presença de causas mobilizadoras de segmentos sociais e de temas transversais no parlamento.

Talvez o maior efeito das mandatas e dos mandatos coletivos seja na luta pelo “comum”. Um grande problema da política convencional é ter se distanciado das possibilidades de construir soluções comunitárias, solidárias e coletivas para além do mercado, de produzir espaços e vivências anticapitalistas. Trazer a política para o terreno do comum é fundamental. Formular políticas como as comunidades de software livre constroem softwares sofisticados, como os quilombolas organizam seus cuidados e protegem os seus, como as comunidades tradicionais encontram harmonia em seu ambiente entre seres diversos, actantes nos dizeres da antropologia assimétrica.

Enfim, a produção da política pode envolver uma dupla, um trio, dez pessoas, cem ou mais de mil. Um coletivo pode ter tamanho diverso, pode buscar e experimentar novos modos de alargar a democracia mesmo nos limites da democracia liberal. Podem se conectar aos processos coletivos de produção do comum, aos assentamentos agroecológicos, às comunidades tradicionais, às ocupações urbanas, aos grupos virtuais multiterritorializados, enfim, podem trazer a política para a ideia de uma confecção efetivamente coletiva.

Como se trata de um procedimento, o mandato coletivo pode ser um modo de forças antidemocráticas se articularem nas eleições democráticas. Sim, essa possibilidade é provável, mas a natureza da deliberação no interior de um coletivo de direita muda. Imagine Bolsonaro ou seus filhos em um mandato coletivo. Mal possuíam um gabinete. Utilizavam a assessoria para benefícios pessoais. Enfim, a dinâmica interna de um mandato coletivo pode ser extremamente vertical o que anularia as vantagens do mandato compartilhado.

Alguns poderiam dizer que o TSE já vê com desconfiança as candidaturas coletivas. Contudo se observarmos a Constituição Federal notaremos que as candidaturas coletivas estão lá garantidas. No Capítulo IV, Dos Direitos Políticos, temos o parágrafo 3º do Artigo 14 sobre as condições de elegibilidade que são as seguintes: a nacionalidade brasileira; o pleno exercício dos direitos políticos; o alistamento eleitoral; o domicílio eleitoral na circunscrição; a filiação partidária; e a idade mínima.

Nenhuma dessas exigências constitucionais impede as candidaturas ou os mandatos coletivos. Basta que as integrantes e os membros do coletivo tenham a idade mínima, sejam filiados ao partido, residam na mesma circunscrição eleitoral. Seria preciso apenas alterar a lei eleitoral e partidária inserindo a possibilidade de candidaturas e mandatos coletivos. Isso asseguraria aos coletivos concorrer com sua identidade grupal, sem subterfúgios, e permitiria a legalização dos mandatos compartilhados no interior do parlamento.

A legalização dos procedimentos de eleição de coletivos permitiria que seus integrantes registrassem na Justiça Eleitoral e nos partidos o seu regimento interno, suas normas de deliberação e decisão. Dentro de parâmetros legais, cada coletivo poderia ter dinâmicas internas distintas, respeitando as diferentes perspectivas e concepções de organização. Além disso, a lei fixaria regras para o revezamento da integrante ou do membro do coletivo com acesso ao plenário do parlamento, ou seja, o coletivo poderia realizar um rodízio entre seus membros para exercer o papel de parlamentar-titular do coletivo. Nesse caso, a cadeira parlamentar seria reconhecidamente do coletivo e não de um indivíduo eleito. O nome que ocupará a cadeira seria definido pelo coletivo.

A possibilidade dessa mudança é grande. A aprovação de uma lei que garanta e defina as regras das candidaturas e mandatos coletivos, além de reconhecer essa tendência real consolidada no último pleito e poder fortalecer a democracia. Amy Gutman escreveu que “democracia é valiosa não somente porque expressa a vontade da maioria, mas também porque expressa e apoia a autonomia individual em condições de interdependência”. Considero necessário complementar essa ideia. Existe também a autonomia coletiva que está completamente ofuscada pelos notórios desvios da representação individual e pelo poder do dinheiro que tanto interessa aqueles que desprezam o debate e a deliberação. As candidaturas coletivas permitem aumentar o número de pessoas envolvidas nos debates, propicia o foco na luta por programas e pode fortalecer os partidos e mantê-los mais ativos.

*Sergio Amadeu da Silveira é professor da Universidade Federal do ABC. Autor, entre outros livros, de Software livre – a luta pela liberdade do conhecimento (Conrad).

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