O cara é cidadão

Por: SÉRGIO RENAULT

 

A não ser o impedimento de fazer campanha em atos oficiais, a legislação não diferencia o presidente do cidadão no processo eleitoral


Iniciado de fato o processo eleitoral, ainda que não oficializadas as candidaturas à Presidência da República, a disputa política anima o país e testa as nossas instituições. A Justiça Eleitoral, também ela como nunca em nosso país, será fundamental para balizar os contornos da ação dos agentes e partidos políticos. Segundo o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Ricardo Lewandowski, a Justiça adotará o “máximo rigor” para coibir irregularidades dos políticos.

Não há como negar que o rigor na aplicação da legislação é bem-vindo, se preservados os direitos dos cidadãos para que não se obscureça o raro brilho que o momento eleitoral traz para a democracia. O Judiciário parece estar determinado a mudar a nossa cultura político-eleitoral, impondo limites mais restritivos à atuação dos políticos e candidatos. Embora este também seja objetivo louvável, não se pode perder de vista que a construção da democracia é processo do qual participam todos os cidadãos e instituições, cada um cumprindo o seu papel.

Na realidade, os partidos muitas vezes levam a luta política para a Justiça, cabendo a esta impedir a transferência do local dos embates, das ruas para dentro dos tribunais.

Têm sido frequentes as representações de partidos contra o que a legislação atual define como propaganda eleitoral antecipada. É que o artigo 36 da lei nº 9.504/ 97 só permite a propaganda eleitoral após o dia 5 de julho e impõe a aplicação de multa ao responsável pela divulgação da propaganda antes desse prazo. Já há diversos casos de imposição de multas e caberá, em última instância, ao TSE decidir pela manutenção ou não das penalidades. É fato que a legislação tem sido interpretada de forma mais dura no atual processo eleitoral.

O grande número de situações analisadas pelos tribunais nos pleitos passados não permite, contudo, concluir que o rigor atual decorre do maior abuso cometido no atual processo eleitoral. Sempre houve o questionamento da atuação dos políticos nesse período que antecede o momento eleitoral oficial.

Isso decorre naturalmente da circunstância de que o trimestre que a legislação destina à campanha eleitoral não impõe fora desse período “um regime de abstinência ou mutismo político ao país, como se as candidaturas devessem surgir de inopino, por força de ditados do além”, como disse certa vez, em julgamento memorável, o ministro Sepúlveda Pertence.

Embalado por índices inéditos de popularidade, o presidente Lula tem sido um dos principais alvos das representações dos partidos de oposição, que tentam impedi-lo de agir em favor de sua candidata. Mas isso faz parte do jogo eleitoral.

O cumprimento da lei e a obediência às decisões judiciais cabem naturalmente a todos os cidadãos. É bom que se diga que compete ao presidente da República portar-se da mesma forma, cumprindo os mesmos deveres e exercendo os mesmos direitos.

A não ser o impedimento de fazer campanha em atos oficiais, não há nada na legislação que diferencie o presidente do cidadão comum no processo eleitoral. Não cabe, portanto, o questionamento a respeito da legalidade de ele fazer campanha eleitoral. Obedecidos os limites estabelecidos para todos e aqueles específicos referentes aos atos oficiais, o presidente pode fazer campanha eleitoral.
Afastá-lo do processo eleitoral, como quer a oposição, seria impedi-lo de exercer direito fundamental. Pela primeira vez após a abertura democrática fora da cédula eleitoral e podendo jogar papel decisivo nas eleições, o presidente Lula não pode ser impedido de agir como cidadão.

SÉRGIO RABELLO TAMM RENAULT, 51, é advogado. Foi secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça (2003/2004) e subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República (2005/2006).

 

 

Fonte: Folha de S.Paulo

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