O dia em que decidiram não se calar sobre violência policial

A jornalista paulistana Laura Capriglione, de 56 anos, não é exatamente uma “foca”, expressão do meio para designar quem está começando na profissão. Mesmo assim, alguns assuntos ainda parecem ser difíceis de lidar com naturalidade – como quando ela explica a relação entre repórter e mães das vítimas da violência policial na cidade de São Paulo. A voz embarga, o choro é contido, mas a aspereza das palavras deixa a plateia atônita e em silêncio.

Pro Janaina Garcia Do  Trra

“São sempre as mães as pessoas que sofrem essa violência. É uma das cenas mais terríveis com que a gente se defronta: a solidão da mãe – porque o filho dela acabou de ser assassinado, acusado de ser traficante ou de ter resistido à abordagem policial, ou então, vira assaltante”, comenta, sobre as versões oficiais a situações do tipo. “A solidão daquela mãe se manifesta de duas formas: é o desespero para mostrar que aquele menino era trabalhador, estudava, sustentava a casa, jogava futebol, ou, quantas e quantas vezes não me deparei com essa cena, a mãe segurando a carteira de trabalho do filho morto como última fímbria de dignidade que se deixou para esse menino”.

Laura integra hoje o coletivo “Jornalistas Livres” e foi uma das convidadas do ciclo de palestras sobre violência policial promovido nessa quarta-feira pela editora Boitempo no Sindicato dos Bancários, região central da capital paulista. Durante cerca de quatro horas, palestrantes de diferentes áreas da sociedade civil falaram sobre o tema como parte da estratégia de lançamento do livro “Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação”, coletânea de artigos deste ano sobre violência policial e segurança pública da qual vários deles eram também autores. Autor do prefácio do material, o secretário municipal de Direitos Humanos, o ex-senador Eduardo Suplicy, também esteve presente.

20150729193753

“São sempre as mães as pessoas que sofrem essa violência. E uma das cenas mais terríveis com que a gente se defronta: a solidão da mãe – porque o filho dela acabou de ser assassinado, acusado de ser traficante, ou de ter resistido à abordagem policial, ou então, vira assaltante”, diz a jornalista Laura Capriglione (primeira, na direita para a esquerda)

 

Distribuição da violência policial “não é democrática”, diz socióloga

Para a socióloga Ariadne Natal, de 31 anos, doutoranda do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), a violência policial estudada no grupo, e discutida no evento e no livro – do qual, junto com Laura e outros debatedores da noite, ela também é autora –, não é exatamente “distribuída de maneira democrática” nas grandes cidades.

img4406

“A violência da polícia de fato se concentra em áreas periféricas, e predominantemente com jovens do sexo masculino e negros. É um foco bem definido e voltado a agentes com menos capital social para agir, com menos possibilidade de se defenderem e menos formadores de opinião – diferente, por exemplo, se ocorresse dentro de um campus como o da USP”, analisou. “Há uma pesquisa recente da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), sobre letalidade da polícia, e que aponta uma proporção de 60% de negros para 40% de brancos mortos pela polícia. E violência não é só morte, mas ações cotidianas como nas blitze com revistas, por exemplo”, afirmou a pesquisadora. “O tipo de violência mais monitorado são os assassinatos, mas a violência física, de abuso, é mais difícil de monitorar porque depende de uma denúncia, e as pessoas não se sentem confortáveis de denunciar um policial. Há, portanto, muita subnotificação, o que dificulta a gente ter uma dimensão real do problema”.

Para psicanalista, há “medo de denunciar”

Também autora da coletânea e palestrante no evento, a psicanalista Maria Rita Khel afirmou acreditar que a sociedade, em geral, tem consciência de que a polícia não deve agir de forma truculenta, “mas tem medo de denunciar” isso.

“Eu acho que a sociedade sabe disso, a não ser, talvez, os milionários que estão murados lá no Morumbi [bairro nobre na zona sul de SP]. O que falta é a gente saber que dispositivos criar para evitar essa violência, já que existe medo da polícia. A gente tem medo de uma passeata pedindo que a polícia pare de matar — porque talvez alguns sejam identificados, fiquem marcados… Não falta consciência sobre o problema, mas esse medo gera um fatalismo que deprime as pessoas – não que isso não as incomode”, observou. “Tirando, é claro, essa minoria muito rica que sabe que nunca vai acontecer nada com eles, a menos que por completo descuido da polícia em matar o filho de uma pessoa dessas”, ressalvou.

Casas viraram “bunkers” contra a violência, avalia sociólogo

Para o sociólogo João Peschanski, da faculdade Cásper Líbero, discutir a violência policial traz à tona temas que parecem, em alguns momentos, “intocáveis”.

“A importância de uma discussão dessas é democrática. Muitas vezes perdemos a capacidade de opinar e de colocar nossas posições sobre aqueles assuntos que mais importam para a gente porque parecem simplesmente intocáveis”, comentou. “Porque as instituições punitivas parecem totalmente fora do controle civil. Isso nos deixa reféns de uma série de decisões que importam para as nossas vidas, e das quais não temos nenhuma voz – e é nesse ponto em que a violência policial importa: porque determina o modo como as pessoas vivem as suas vidas. Se você é pobre, negro e homem da periferia, hoje, a probabilidade de você ser vítima desse tipo de violência é simplesmente enorme e avassaladora”, destacou.

Indagado se o debate atual sobre redução da maioridade penal de 18 para 16 anos maquia ou adia o debate sobre a violência das polícias no Brasil, Peschanski atentou para o papel de veículos de comunicação à percepção desses temas.

“Estamos em um ponto dessa cultura da violência em que a pessoa é vítima dessa violência ou simplesmente excitado por ela – temos esses programas de televisão pelos quais o telespectador é submetido a situações de violência e pelos quais se gera o viés psicológico de que essas pessoas acham que realmente vivem assim”, ponderou. “Isso nos faz achar que qualquer outro tipo de sociabilidade é impossível: sempre estamos com medo de que vá acontecer alguma violência, e achamos que o único local protegido, e olhe lá, é dentro da nossa casa:  teremos nela um bunker de proteção, porque tudo o que vem da rua assusta. Mas a sociedade é muito mais interessante do que isso – o problema é que esse medo dá voto e faz com que outras situações abusivas sejam aceitas, e assim por diante”, completou o sociólogo.

+ sobre o tema

Jogador brasileiro foi expulso do campo com gás pimenta

Robson, jogador brasileiro do Genus, foi expulso com gás...

Airbnb e Uber mostram como funciona o racismo na era digital

Casos de preconceito em aplicativos revelam que a economia...

para lembrar

Stuart Hall: a favor da diferença

  Sociólogo e um dos principais teóricos do multiculturalismo, morto...

Por que fui citada por Jair Bolsonaro?

"Tem uma tal de Bianca Santana aqui, uma blogueira,...

Lilia Schwarcz e os reflexos do racismo histórico

Lilia Schwarcz comenta os reflexos do racismo histórico na...

Grécia: Apesar de protestos, governo intensifica racismo policial

Cartazes de extrema direita estão sendo pichados; uma...
spot_imgspot_img

PM afasta dois militares envolvidos em abordagem de homem negro em SP

A Polícia Militar (PM) afastou os dois policiais envolvidos na ação na zona norte da capital paulista nesta terça-feira (23). A abordagem foi gravada e...

‘Não consigo respirar’: Homem negro morre após ser detido e algemado pela polícia nos EUA

Um homem negro morreu na cidade de Canton, Ohio, nos EUA, quando estava algemado sob custódia da polícia. É possível ouvir Frank Tyson, de...

Denúncia de tentativa de agressão por homem negro resulta em violência policial

Um vídeo que circula nas redes sociais nesta quinta-feira (25) flagrou o momento em que um policial militar espirra um jato de spray de...
-+=