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Do blog Ouro de Tolo
História e Outros Assuntos: “Domingos Sodré, um sacerdote africano”
Nesta terça-feira, o doutorando em História Fabrício Gomes discorre sobre o livro que conta a saga do africano Domingos Sodré, escravo e depois alforriado na Bahia há quase dois séculos.
Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX
Uma biografia sem personagem principal. Talvez essa seja a primeira impressão que o leitor pode ter ao iniciar a leitura de “Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX“, do historiador baiano João José Reis. Sem dúvidas, trata-se de uma biografia inovadora, se levarmos em consideração ao gênero biográfico padrão – histórias de vida cronológicas, com previsibilidade e a linearidade do “início, meio e fim”. Avançando três capítulos, o biografado entra e sai da narrativa constantemente. Afinal, “onde está Domingos Sodré?”, ao mesmo tempo personagem principal e anônimo da história?
Mas engana-se quem pensa que o surgimento (ou desparecimento?) da personagem é fruto do acaso. Na página 16, o autor dá a dica: “O leitor perceberá que nosso personagem sai frequentemente de cena para dar lugar ao seu mundo e a outros personagens que o povoam, através dos quais sua história é em grande medida contada…”.
Essa é a senha para se entender a história desse africano nascido no Reino de Onim – atual Lagos, na Nigéria – em torno do ano 1797, que chegou à “Cidade da Bahia” (Salvador) durante o apogeu da produção de cana-de-açúcar, entre 1815 e 1820. Notemos aqui outra característica marcante dessa biografia: a imprevisibilidade dos fatos. Mas como escrever uma história sem comprovação de acontecimentos e datas? Sem dúvidas, João José Reis apresenta essa proposta, fugindo ao padrão tradicional das biografias de antanho. A vida desse africano, recém-liberto no século XIX é o fio-condutor da história, que expõe as relações sociais, relações de poder e atividades econômicas e culturais vivenciadas pelos libertos, vivendo às margens do sistema escravista. Os libertos são, ao mesmo tempo, resultado e oposição a este sistema.
João José Reis é doutor em História pela Universidade de Minnesota (EUA), pós-doutor pela Universidade de Londres, Universidade de Stanford, e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É uma referência quando o assunto é escravidão no século XIX. Escreveu alguns clássicos sobre este assunto, como “Negociação e conflito – A resistência negra no Brasil escravista” (em co-autoria com o historiador Eduardo Silva), “A morte é uma festa – ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX” (Prêmio Jabuti, em 1992), “Rebelião escrava no Brasil – A história do Levante dos Malês em 1835″, “O Alufá Rufino – Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (1822-1853)” – em co-autoria com os historiadores Flávio Gomes e Marcus Carvalho -, entre outros artigos acadêmicos de fundamental importância para se entender a escravidão naquele período histórico.
Nosso personagem foi comprado pelo coronel de milícias Francisco Maria Sodré Pereira, indo trabalhar num engenho, no Recôncavo baiano, adquirindo o sobrenome “Sodré” de seu senhor. Foi casado duas vezes, chegando a possuir seis escravos. Fez parte de uma comunidade da nação nagô e foi alforriado em 1836, ficando conhecido posteriormente pela alcunha de “papai de terreiro”, devido à sua prestimosidade no candomblé – recebia clientes de toda natureza social em sua casa, situada na bem localizada Ladeira de Santa Tereza, em Salvador, próxima a um convento de freiras, onde preparava beberagens, ebós e amuletos.
A religião é um dos pontos centrais deste livro, que dedica alguns capítulos a mostrar a capilaridade desta prática religiosa em praticamente todas as camadas sociais da Bahia, desde as senzalas até a aristocracia dos salões. Eram rituais que atraíam grande diversidade de interessados: desde esposas que não queriam que os maridos esquecessem os “deveres conjugais”, passando por escravos que desejavam “amansar” seus senhores, até mesmo negociantes em busca de bons negócios. Há uma minuciosa descrição dos rituais do candomblé, práticas e costumes aí inseridos. Aí o leitor poderá perguntar como o autor conseguiu a proeza do detalhamento. Uma possível resposta seria a familiaridade de João José Reis com o assunto, abordado de uma ou outra forma em suas obras anteriores. João tem o domínio, de fato, do tema e conhece como poucos, a religiosidade africana. Outra questão importante é a primazia arquivística deste historiador, que engendra um processo investigativo inusitado sobre a personagem, numa pesquisa de fôlego.
Ao mesmo tempo em que crescia vertiginosamente, imbrincando-se na heterogeneidade de todas as camadas sociais baianas, por volta de 1850, o candomblé enfrentou forte repressão policial, numa sociedade comandada pelo fervor e tradição do catolicismo. As religiões oriundas da África eram mal-vistas. O candomblé era encarado como divertimento e empecilho para o florescimento da nação – vale lembrar que desde meados do século XIX, a política de “branqueamento” da nação já era objeto de desejo em nossa sociedade. Escravos que praticavam rituais eram punidos com prisão, castigos e até mesmo o retorno compulsório à África.
Além de expor a tessitura da rede social e religiosa africana na Bahia, a história de vida de Domingos Sodré permite ao leitor compreender a negociação e o conflito existentes, a todo o momento, entre as autoridades (Polícia), a imprensa e os perseguidos – os praticantes do candomblé. O livro também descerra as cortinas para as atividades econômicas praticadas pelos libertos: Domingos Sodré fazia parte de uma junta de alforria – instituições de crédito, destinadas a libertar escravos africanos.
A mobilidade social de Domingos Sodré foge à ilusão biográfica, descrita por Pierre Bourdieu, não sendo previsível e tampouco cronológica. Sua trajetória não é linear, vê-se a todo instante diante de uma encruzilhada: se constitui e se transforma à medida que transita por distintos territórios sociais e culturais. Percebemos a relação entre indivíduo e sociedade de maneira menos dicotômica e mais tensionada, de acordo com os condicionamentos sociais e as singularidades individuais de cada um, como Gilberto Velho nos aponta. “Projetos mudam, assim como pessoas mudam por meio dos seus projetos”. A narrativa também passa ao largo daquilo que Jean-Claude Passerón, sociólogo francês, chamou de “utopia biográfica”: dar um excesso de sentido e de coerência inerente a qualquer tentativa biográfica.
Terminada a leitura da obra, podemos dizer que além de conhecermos a personagem, sua vida e o contexto político e social em que vivia, aprendemos a importância do método que direciona a pesquisa – grande desafio aos historiadores na produção de biografias. Como já citado ao longo desta análise, o caráter lacunar das fontes possibilita que a narrativa torne-se, de certo modo, ficção e imaginação do autor na escrita da história, na tentativa de “adivinhar” como determinados acontecimentos da vida de Domingos Sodré poderiam ter ocorrido.
E nesse exercício de adivinhação, o próprio João José Reis poderia ser Domingos Sodré – o adivinho. Historiadores são, de certo modo, também adivinhos, já que acreditar que os documentos (fontes) não se encerram em si mesmas e não dizem tudo que são capazes de provar. É como se nós, historiadores, devêssemos também deixar nossas mentes e intuições trabalharem, estabelecendo ligações entre eventos não explicitados nas documentações.
O que foi a trajetória de Domingos Sodré, senão construída pelo autor? Na falta de fontes, João José Reis deixou sua mente trabalhar numa tentativa imaginativa de situar a personagem no contexto da sociedade escravista baiana do século XIX, tendo o passado como referência para o constructo de sua história de vida. Voltando mais uma vez a Passerón, não é reconstituindo a história de vida de Domingos Sodré com perfeição que dará autencidade a sua trajetória.
Parece que João José Reis queria apenas um motivo para escrever sobre os temas da escravidão, liberdade e religião na Bahia oitocentista. Ele conseguiu, neste exercício de micro-história, apresentar uma época através de um ator social à primeira vista desimportante, mas extremamente rico em suas singularidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX” (resenha). Revista Brasileira de História. vol.29. no.57 . São Paulo. Junho de 2009.
BOURDIEU, Pierre. “A Ilusão Biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Morais, AMADO, Janaína (Org.) Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 183-191.
LEVI, Giovanni. “Usos da Biografia”. In: FERREIRA, Marieta de Morais, AMADO, Janaína (Org.)Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.p. 167- 182.
LEVILLAIN, P. “Os protagonistas da biografia”. In: RÉMOND, R. (org.) Por uma História Política.Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 141-184.
LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas. A experiência da microanalise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998. (pp. 225-249)
PASSERÓN, Jean-Claude. “Biographies, flux, itinéraires, trajectoires”: Revue française de sociologie – Année 1990 – Volume 31 – Numéro 1. pg 3-22.
REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.