O nascimento do Sujeito Negro

Desde que eu posso me lembrar, sempre fui acompanhado por uma profunda melancolia. Inconstante – às vezes onipotente, às vezes quase imperceptível – mas sempre presente.  Depois de versar e tergiversar sobre essa fiel companheira com alguns ouvintes, nem sempre atentos, percebi o que era esse sentimento. A melancolia, no fundo, era enraizada num sentimento de não ser. Não caber. Não pertencer. 

Fez sentido. Eu, de fato, nunca durei muito em grupos, o que explica os ouvintes desatentos não terem ficado pra continuação. Bom…de qualquer maneira, a insônia – uma nem tão fiel companheira, visitante esporádica – se dedicou um pouco mais. Numa dessas noites ela se deitou em minha cama, íntima como de costume, e me mostrou que essa melancolia era a minha kriptonita. Desde sempre me tornara fraco. Impotente. Cordial.

Nessa noite fui bombardeado de fatos, que apesar de me incomodarem, até o momento, sempre foram meio amorfos meio anônimos…mas que tornavam a melancolia quase crística. Poderosa. Insuportável. 

  1. Embora toda a minha família por parte de pai seja preta – retinta –, a maioria esmagadora dos agregados são brancos. Da minha mãe aos maridos das primas mais distantes. 
  2. Alguns meses depois que eu entrei na faculdade, há cinco anos, eu marquei de encontrar alguns amigos, numa noite de sábado. Eu precisava cruzar um bairro que nunca fora muito seguro, então marquei de encontrar dois amigos para irmos juntos. Como de costume, cheguei alguns minutos antes e encostei na grade externa da Universidade para espera-los. Em alguns minutos dois dos guardas do campus se aproximaram, me encurralando contra a grade, com as mãos no rádio e em suas “armas brancas” para me informar que eu não poderia ficar ali e deveria sair, embora eu estivesse com a minha carteirinha acadêmica. Eles só se afastaram quando os dois amigos – brancos – se aproximaram. 
  3. Até os 19 anos, um ano depois de sair de casa, eu nunca soube de alguém que houvera se sentido romantica ou sexualmente atraído por mim. Desde lá, tive quatro ou cinco relacionamentos não oficiais, quase todos terminaram de maneira abrupta, sem que eu soubesse o porquê do termino. A maiorias desses caras, depois disso, namoraram pessoas, se não brancas, sensivelmente mais claras do que eu.
  4. Algumas vezes, com a minha última terapeuta, tentei discutir minhas angustias como um homem negro no ambiente acadêmico. Depois de algumas tentativas falhas, a psicóloga – branca – sugeriu que eu pudesse estar utilizando a minha cor como subterfúgio para uma suposta fobia social. Nessa mesma sessão ela ainda disse que eu tinha traços brancos, que beleza era uma questão relativa e, para finalizar, argumentou que eu, com certeza, seria considerado lindo na Dinamarca. 
  5. Há alguns meses, quando começava a me relacionar afetivamente com um cara – autodeclarado pardo – no caminho pra academia, numa manhã de Sábado, passamos em frente a uma barbearia em que estavam várias pessoas brancas e ele disse “nossa, a pele branca combina com tudo, né? Aquele cara veio pra barbearia de chinelos e pijamas. Eu fico ridículo se sair de casa usando pijamas”. 
  6. Eu nunca tive dúvidas sobre eu ser um homem gay, mas me lembro de pensar, quando criança, que não tinha problema, porque eu nunca namoraria ninguém. Segundo as minhas crenças, na época, pessoas feias só namoravam outras pessoas feias, e eu não queria namorar uma pessoa feia. Essa crença foi reafirmada quando, no ensino fundamental, em meio a uma risada eufórica e satisfeita, “uma amiga” me disse que eu não namorava porque eu era feio. Eu acreditei nisso por muito tempo. 
  7. Uma pessoa bem próxima na minha família – branca – costuma querer tocar o cabelo de pessoas pretas e sempre se refere a mulheres negras com adjetivos como “neguinha” e “escurinha”.

Nessa noite algo se concretizou em mim. Uma mudança que começara há pouco mais de um ano, no Oscar de 2019, quando o Oga Mendonça me apresentara o conceito de Magical Negro, cunhado pelo Spike Lee. Naquela noite o grande destaque fora Green Book, por Nick Vallelonga. Eu ficara feliz com as vitórias do filme, mas nessa noite entendi que a felicidade fora, na verdade, identificação. Finalmente, percebi que, tal qual o personagem do Mahershala Ali no filme, eu não protagonizava minha estória. Os fatos, enfim, ganharam forma e nome. 

Nessa noite tudo fez sentido. Eu entendi o porquê de eu nunca sair de casa usando chinelos. De eu ter medo da noite. De eu não me identificar com o vilão, nem com os mocinhos. De eu sempre me sentar no fundo do ônibus. De eu não gostar de shoppings. De eu sempre procurar reafirmação das minhas vitórias naqueles que sempre foram o absoluto contrário de mim. De o carinho sempre vir acompanhado de medo, sofrimento e autopunição, apesar de ter nascido numa família amorosa. De eu nunca falar sobre mim. De eu querer proteger o mundo que quem eu pudesse ser. 

Nessa noite eu fui dominado por ódio. Ódio por perceber que quando nasci com a minha pele escura, enfiaram uma estaca no meu peito que por todos esses anos ardeu. Plantaram uma dor no meu coração e me fizeram acreditar que viver era assim. Me convenceram de que eu não poderia ser potente e amado. Que eu não deveria ser, caber ou pertencer.

Mas nessa noite eu também entendi o porquê dessa grande Primavera dos Sujeitos Negros. Do aquilombamento. Da tomada de poder. Da afetividade. Da proteção incondicional. Nessa noite eu também renasci. Renasci e me comprometi a me refazer. Renasci e encontrei nas mãos de Silvio Almeida, de Caio César, de Neuza Santos Souza, de James Baldwin, de Toni Morrison, de Emicida, de Cleiton Gonçalves, de Bell Hooks, de Abdias do Nascimento, referências muito melhores de mim mesmo. Renasci e decidi trazer quem eu puder junto de mim. Carregar minha História e entregar o poder nas mãos dos meus. Nessa noite eu descobri que, se eu cheguei até aqui, o Super sempre fui eu. 


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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