O senhor se considera afrodescendente?

No mês em que se comemoram os 200 anos da Revolução de Maio, não quero que uma notícia passe escondida entre os festejos: este ano, pela primeira vez desde 1887, um censo nacional se ocupará de recolher informações sobre a população afrodescendente na Argentina.

Parece brincadeira, mas enquanto estatísticas extra-oficiais apontam que quase dois milhões de argentinos possuem raízes africanas, oficialmente não se sabe quantos negros há no país e boa parte da população continua acreditando que não há nenhum.

Nem sempre foi assim.

De acordo com o censo de 1778, a população argentina de origem africana chegava a 30% (em Buenos Aires a relação chegou a ser de cinco negros para um branco).

A proporção se manteve no censo de 1810, porém caiu para 25% em 1838. Em 1887 apareceu reduzida a míseros 2%! Depois dessa data, não há mais dados oficiais.

O que aconteceu?

Os historiadores tentam explicar o “desaparecimento” dos afro argentinos em função de sua participação em todas as guerras do século XIX. Eles foram “carne de canhão”, como se diz aqui, durante as invasões inglesas de 1806-1807; cruzaram os Andes integrando o Exército Libertador de San Martin e participaram de diversas guerras internas.

Por fim, foram dizimados durante a Guerra do Paraguai. Os que resistiram teriam morrido durante a epidemia de febre amarela que assolou Buenos Aires em 1871. Ou migrado para o Uruguai.

Meu namorado me contou que durante sua infância, nas comemorações da Pátria, as professoras pintavam de preto o rosto de algumas crianças para representar os negros que, “um dia”, haviam existido no país. Hoje isso não precisa mais ser feito.

Basta sair para a rua. E ver. Mas não é tão simples assim. Para o antropólogo Pablo Círio, assim como os censos são um recorte cultural e ideológico, nossa mirada também. “Uma pessoa não olha naturalmente, olha condicionado pela educação, por fatores históricos, por interesses, por silêncios. O argentino não esta preparado para ver os negros”, afirmou recentemente ao jornal Página 12.

Ele diz que muita gente aqui, quando vê um negro, pensa que é brasileiro ou uruguaio. Nunca imagina que seja um “afroportenho”, descendente de escravos.

Pelas ruas, também se vê hoje muitos “outros negros”, vindos do Equador, Republica Dominicana e Haiti. E, mais recentemente, um número crescente de africanos, especialmente do Senegal, Mali e Nigéria, reforçada nos últimos anos após o endurecimento das políticas migratórias dos países europeus.

Uma boa e saudável aproximação com outras culturas e raças é a arte. E Buenos Aires anda com uma nutrida agenda afro. Chamadas de candombe aos domingos; festas bacanas como a Afrolunes, grupos de percussão como os Negros de Miercoles; aulas de instrumentos de nomes estranhos como Djembe, Doun Doun e Sang Bang; dança de orixás, classes de batucada brasileira e ritmos afrocubanos. Ufa!

A movida toda, bem como textos de primeira qualidade sobre questões de raça, música e arte podem ser encontrados na excelente revista Quilombo ou no Instituto Nacional contra Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (http://www.revistaquilombo.com.ar/ e http://www.inadi.gov.ar/).

Para completar, o Museu Casa Carlos Gardel está com uma exposição chamada “A História Negra do Tango”, que resgata a relação que teve esta população com o ritmo mais famoso do país. Entre os mais conhecidos interpretes locais de origem africana estão Guillermo Barbieri e José “el negro” Ricardo, que foram guitarristas de Carlos Gardel.

Termino, claro, com uma história de Jorge Luis Borges. Dizem que lá pela década de 20, um dia ele chegou em casa e contou a sua mãe que havia estado com “compadritos” e que estes o tinham convidado para comer. A mãe, então, responde: espero que não tenha sido assado, essa porcaria que comem os escravos.

Fonte: O Globo

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