Os direitos humanos não conhecem fronteiras

“A injustiça em qualquer lugar ameaça a justiça em todos os lugares. Estamos presos em uma rede inescapável de mutualidade, entrelaçados no tecido único do destino. Tudo o que afeta alguém diretamente afeta a todos indiretamente.”

Martin Luther King Jr, “Carta da Prisão de Birmingham”, 16 de abril de 1963, EUA

No dia 9 de outubro de 2012, Malala Yousafzai, de 15 anos, foi atingida por um tiro na cabeça disparado por talibãs no Paquistão. Seu crime foi defender o direito das meninas à educação. Seu meio foi um blog. Assim como aconteceu com Mohamed Bouazizi, cujo ato em 2010 provocou uma onda de protestos que tomou o Oriente Médio e o norte da África, a determinação de Malala ultrapassou as fronteiras do Paquistão. A coragem e o sofrimento humanos, combinados ao poder das mídias sociais, livres de fronteiras, têm transformado nossa compreensão da luta por direitos humanos, igualdade e justiça e têm provocado uma mudança nos discursos sobre soberania e direitos humanos.

Nos mais diversos lugares e enfrentando sérios riscos, as pessoas tomaram as ruas e os espaços virtuais para denunciar a repressão e a violência dos governos e de outros atores poderosos. Por meio de blogs, das redes sociais e da imprensa tradicional, criaram um sentimento de solidariedade internacional, que manteve viva a memória de Mohamed e os sonhos de Malala.

Essa coragem, somada à capacidade de comunicar um anseio profundo por liberdade, justiça e direitos, assustou os detentores do poder. Declarações de apoio às pessoas que protestavam contra a opressão e a discriminação contrastavam de modo flagrante com as ações de muitos governos, que reprimiam manifestantes pacíficos e buscavam desesperadamente controlar a esfera digital – inclusive tentando recriar suas fronteiras no mundo virtual.

Afinal, para quem está no poder se valendo e abusando do conceito de soberania, como é dar-se conta de que as pessoas têm o poder de desmontar as estruturas de dominação e de lançar luz sobre os instrumentos de repressão e desinformação que eles usam para manter-se no poder? O sistema econômico, político e comercial criado pelos donos do poder costuma resultar em abusos dos direitos humanos. O comércio de armas, por exemplo, apesar de arruinar tantas vidas, é defendido por governos que usam as armas para reprimir sua própria população ou que lucram com sua venda. A justificativa é a soberania.

Soberania e solidariedade

Na busca por liberdades, direitos e justiça, precisamos repensar o conceito de soberania. O poder da soberania pode e deve originar-se quando alguém assume o controle de seu próprio destino, assim como ocorreu com os Estados que se livraram do colonialismo ou de vizinhos dominadores, ou os que se ergueram das cinzas de movimentos que derrubaram regimes repressores e corruptos. Esse é o poder positivo da soberania. Para mantê-lo vivo e conter seu lado abusivo, precisamos redefinir a soberania e reconhecer a solidariedade e a responsabilidade globais. Somos cidadãos do mundo e nos importamos com o que acontece no mundo porque temos acesso à informação e podemos optar por não ter limites.

Os Estados costumam invocar a soberania – que entendem como o controle sobre questões internas sem interferência externa – para poder fazer o que querem. Eles usam essa noção de soberania, por mais que seja ilusória, para esconder ou negar assassinatos em massa, opressão, corrupção, fome ou perseguição de pessoas por motivos de gênero.

Aqueles que abusam de seu poder e de seus privilégios, porém, já não podem mais esconder esses abusos tão facilmente. Munidas de telefones celulares, as pessoas gravam e publicam vídeos que revelam a realidade dos abusos dos direitos humanos em tempo real e que expõem a verdade por trás de retóricas hipócritas e justificativas oportunistas. Do mesmo modo, corporações e outros poderosos atores privados estão mais sujeitos ao escrutínio. Quando suas ações são desonestas ou criminosas, fica cada vez mais difícil esconder as consequências.

Operamos em uma estrutura de direitos humanos que aceita a soberania, mas que não a defende de modo inerente – principalmente depois que a doutrina da responsabilidade de proteger foi aprovada por consenso na Cúpula Mundial da ONU de 2005 e reafirmada repetidamente desde então. E é fácil ver porque: só o ano de 2012 tem evidências suficientes de governos que violaram os direitos das pessoas que eles governam.

Um componente essencial na proteção dos direitos humanos é o direito de todas as pessoas a não sofrer violência. Outro elemento crucial é a fixação de limites estritos à capacidade do Estado de interferir em nossa vida privada e familiar, o que inclui a proteção de nossas liberdades de expressão, de associação e de reunião. Inclui ainda a não interferência em nossos corpos ou no uso que fazemos deles – as decisões relativas à nossa reprodução, a nossas identidades sexuais e de gênero, bem como ao nosso modo de vestir.

Nos primeiros dias de 2012, 300 famílias foram deixadas sem teto na capital do Camboja, Phnom Penh, depois de serem despejadas com violência do local em que viviam. Poucos dias depois, cerca de 600 brasileiros que viviam na favela do Pinheirinho, no estado de São Paulo, tiveram o mesmo destino. Em março, 21 pessoas foram mortas na Jamaica em uma série de tiroteios policiais; músicos azerbaijanos foram espancados, presos e torturados em detenção; e o Mali afundou-se numa crise após um golpe de Estado.

E as violações prosseguiram: mais remoções forçadas na Nigéria; jornalistas assassinados na Somália, no México e em outros lugares; mulheres estupradas ou agredidas sexualmente dentro de casa, nas ruas ou quando exerciam seu direito de protestar; comunidades de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais proibidas de comemorar o Dia do Orgulho e seus integrantes espancados; e ativistas de direitos humanos assassinados ou encarcerados por acusações forjadas. Em setembro, pela primeira vez em mais de 15 anos, o Japão executou uma mulher. Novembro foi marcado por uma nova escalada do conflito Israel/Gaza, enquanto milhares de civis fugiam de suas casas na República Democrática do Congo quando o grupo armado Movimento 23 de Março (M23), apoiado por Ruanda, avançou sobre a capital da província de Kivu-Norte.

E então houve a Síria. No fim do ano, segundo a ONU, o número de mortos no país já passava de 60 mil e continuava a subir.

Ausência de proteção

Nas últimas décadas, a soberania do Estado – cada vez mais associada ao conceito de segurança nacional – foi usada com frequência para justificar ações contrárias aos direitos humanos. Dentro de suas fronteiras, os detentores do poder alegam que somente eles podem tomar decisões sobre as vidas das pessoas que eles governam.

Assim como seu pai, o presidente Bashar al Assad manteve-se no poder fazendo que o exército e as forças de segurança da Síria se voltassem contra a população que pedia sua renúncia. Mas há uma diferença crucial entre as duas situações. Na época do massacre de Hama, em 1982, a Anistia Internacional e outras organizações chamaram a atenção para o que estava acontecendo e trabalharam sem descanso para deter o massacre, que transcorreu praticamente sem que o resto do mundo enxergasse. Nos dois últimos anos, ao contrário, corajosos ativistas e blogueiros sírios conseguiram mostrar ao mundo diretamente o que ocorria em seu país, no mesmo instante em que os acontecimentos se sucediam.

Apesar do número crescente de mortes – e da abundância de provas dos crimes cometidos – o Conselho de Segurança da ONU mais uma vez se absteve de proteger os civis. Por quase dois anos, os militares e as forças de segurança sírias lançaram ataques indiscriminados e detiveram, torturaram e mataram pessoas que consideravam apoiadoras dos rebeldes. Um relatório publicado pela Anistia Internacional documentou o uso de 31 diferentes formas de tortura e outros maus-tratos. Os grupos armados de oposição também praticaram execuções sumárias e torturas, embora em escala bem menor. A não intervenção do Conselho de Segurança da ONU é defendida, sobretudo pela Rússia e pela China, em nome do respeito à soberania do Estado.

A noção de que nem Estados individuais nem a comunidade internacional devem agir decisivamente para proteger os civis quando governos e suas forças de segurança atacam sua própria população – a menos que ganhem alguma coisa com isso – é inaceitável. Seja quando pensamos no genocídio de 1994 em Ruanda, na população civil tâmil encurralada em uma “zona segura” letal no norte do Sri Lanka, onde milhares de pessoas morreram em 2009, nas pessoas que seguem morrendo de fome na Coréia do Norte ou no conflito da Síria, a inação em nome da soberania do Estado é indesculpável.

É dos Estados a responsabilidade maior de proteger os direitos da população que vive em seu território. Mas ninguém que acredite em justiça e direitos humanos poderá argumentar que a soberania esteja servindo a esses propósitos. Muito pelo contrário.

É preciso questionar esta noção desastrosa que combina o princípio de soberania absoluta dos Estados com o foco na segurança nacional ao invés de priorizar os direitos humanos e a segurança humana. Chega de desculpas. Está na hora de a comunidade internacional tomar uma atitude e redefinir sua obrigação de proteger os cidadãos de todo o planeta.

Nossos países têm a obrigação de respeitar, proteger e realizar nossos direitos. Muitos, porém, não cumpriram seu dever. Alguns deles, na melhor das hipóteses, tiveram uma atuação inconsistente. Apesar de todos os êxitos alcançados nas últimas décadas pelo movimento de direitos humanos – desde a libertação de prisioneiros de consciência até a proibição global da tortura e a criação de um Tribunal Penal Internacional –, essa distorção do conceito de soberania está deixando milhões de pessoas em perigo.

Guardiões e exploradores

Um dos exemplos mais cruéis dessa distorção nas últimas décadas é o tratamento que tem sido dado aos povos indígenas. Um valor essencial compartilhado por comunidades indígenas de todo o mundo é a rejeição da noção de “propriedade” da terra. Em vez de proprietários, os índios tradicionalmente se identificam como guardiões da terra que habitam. Sua rejeição ao conceito de propriedade, porém, tem lhes custado caro.

Sabe-se que muitas das terras habitadas pelos índios possuem riquezas naturais imensas. E os governos, que deveriam proteger os direitos indígenas, apropriam-se da terra para o “Estado soberano” e então a vendem, arrendam ou permitem que seja pilhada.

Em vez de respeitar o valor das comunidades como guardiãs da terra e de seus recursos, os Estados e as corporações adentram essas áreas e desalojam à força as comunidades indígenas, apoderando-se das terras ou dos direitos aos minérios nelas guardados.

No Paraguai, os índios Sawhoyamaxa passaram 2012 do mesmo modo que passaram os últimos 20 anos: alienados de suas terras tradicionais, mesmo com uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhecendo, em 2006, seu direito a suas terras. Mais ao norte, dezenas de Primeiras Nações indígenas do Canadá continuaram se opondo à proposta de construção de um oleoduto que atravessará suas terras tradicionais para conectar as areias petrolíferas de Alberta à costa da Colúmbia Britânica.

Numa época em que os governos deveriam estar aprendendo com os índios a repensar a relação que mantêm com os recursos naturais do planeta, as comunidades indígenas estão sendo assediadas em todo o mundo.

O que torna essa devastação ainda mais alarmante é o fato de os Estados e as corporações estarem solenemente ignorando a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que exige de forma explícita que os Estados garantam a participação plena e efetiva dos índios em todas as questões que os afetem. Quando os ativistas dos direitos indígenas tentam defender essas comunidades e suas terras, eles se tornam alvo de violências e de assassinatos.

A discriminação, a marginalização e a violência, porém, não se limitam às Américas, mas ocorrem em todo o mundo – desde as Filipinas até a Namíbia, onde, em 2012, as crianças dos povos San, Ovahimba e outras minorias étnicas enfrentaram inúmeros obstáculos que impediram seu acesso à educação. Foi o que aconteceu em Opuwo, onde as crianças Ovahimba foram obrigadas a cortar o cabelo e foram proibidas de usar suas roupas tradicionais para que pudessem frequentar as escolas públicas.

O fluxo de capital e de pessoas

A disputa por recursos é apenas um dos aspectos de nosso mundo globalizado. Outro aspecto é o fluxo de capitais que atravessa fronteiras e oceanos para chegar aos bolsos dos poderosos. É verdade que a globalização trouxe crescimento econômico e prosperidade para alguns, mas a experiência indígena agora se repete com outros povos, que estão assistindo governos e corporações beneficiarem-se da terra em que esses povos vivem e passam fome.

Na África subsaariana, por exemplo, apesar de muitos países terem apresentado crescimento significativo, milhões de pessoas continuam vivendo em uma situação de pobreza que as aproxima da morte. A corrupção e o fluxo de capitais para paraísos fiscais fora da África ainda estão entre as principais causas desse flagelo. A riqueza mineral da região continua a alimentar os negócios das corporações e dos políticos, em que ambos saem lucrando – mas muitos acabam perdendo. A falta de transparência nos acordos de concessão e a total ausência de prestação de contas faz que os acionistas das corporações e os políticos enriqueçam injustamente, enquanto as pessoas cujo trabalho é explorado, cuja terra é degradada e cujos direitos são violados simplesmente sofrem. A justiça está muito além de seu alcance.

Um outro exemplo da livre circulação de capital são as remessas de dinheiro enviadas para casa por trabalhadores migrantes em todo o mundo. Segundo o Banco Mundial, o valor das remessas desses trabalhadores para os países em desenvolvimento é três vezes maior do que o valor das remessas oficiais para a assistência internacional ao desenvolvimento. Apesar disso, em 2012, esses mesmos trabalhadores migrantes não tiveram seus direitos protegidos adequadamente nem nos seus países de origem nem nos países em que trabalham.

Em 2012, por exemplo, as agências de recrutamento no Nepal continuaram a traficar trabalhadores migrantes para serem explorados e submetidos a trabalhos forçados. As recrutadoras cobravam tarifas acima do limite imposto pelo governo, o que obrigava os trabalhadores a tomar grandes empréstimos com altas taxas de juros. Muitos migrantes foram enganados pelos recrutadores com relação aos termos e às condições de trabalho. As agências que infringiam as leis nepalesas raramente eram punidas. Com uma lei que não faz mais do que simular interesse pelos direitos das mulheres, o governo nepalês proibiu, em agosto, que mulheres com menos de 30 anos emigrassem para prestar serviços domésticos no Kuait, no Qatar, na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos, devido às denúncias de abusos sexuais e de outras agressões físicas nesses países. A proibição, porém, pode simplesmente aumentar os riscos para as mulheres que agora se veem forçadas a buscar trabalho por meios informais. O que o governo deveria ter feito era esforçar-se para assegurar ambientes seguros em que as mulheres pudessem trabalhar.

Uma vez que as pessoas emigram, os Estados de origem alegam que, pelo fato de não estarem mais em seu território, eles não têm qualquer obrigação para com elas. Os Estados de destino, por sua vez, alegam que, por não serem cidadãs desses países, essas pessoas não têm qualquer direito. Enquanto isso, a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros das Suas Famílias, que está disponível para assinaturas desde 1990, continua sendo uma das convenções menos ratificadas da ONU. Nenhum dos Estados que recebe imigrantes na Europa Ocidental ratificou a convenção. Ela tampouco foi ratificada por outros países com numerosas populações de imigrantes, como os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, a Índia, a África do Sul e os Estados do Golfo.

Tal vulnerabilidade é ainda maior para os refugiados. Os mais suscetíveis dentre eles são os quase 12 milhões de pessoas apátridas que existem no mundo, um número equivalente ao dos maiores conglomerados urbanos do planeta, como Londres, Lagos ou Rio de Janeiro. Aproximadamente 80 por cento dos apátridas são mulheres. Sem a proteção de seu Estado ‘soberano’, essas pessoas são os verdadeiros cidadãos do mundo. Sua proteção, portanto, cabe a todos nós. Sua existência é o melhor argumento para que se cumpra o dever de proteger, pois as proteções dos direitos humanos devem se aplicar a todos os seres humanos, estejam eles em sua terra natal ou não.

Considera-se atualmente que essa proteção esteja subordinada à soberania do Estado. Enquanto isso, mulheres são estupradas nos campos para desabrigados por todo o Sudão do Sul. Requerentes de asilo, da Austrália ao Quênia, são trancafiados em centros de detenção ou em contêineres de metal, e centenas morrem em embarcações furadas tentando chegar a um porto seguro.

Em 2012, os barcos carregados de africanos que chegaram em apuros à costa italiana foram novamente repelidos da segurança do litoral europeu, pois os Estados reivindicam o caráter sagrado do controle de suas fronteiras. O governo australiano continuou a interceptar os barcos de refugiados e imigrantes ainda em alto-mar. A Guarda Costeira dos Estados Unidos defendeu essa prática: “Interceptar os migrantes em alto-mar permite que eles possam ser rapidamente devolvidos aos seus países de origem sem o custoso processo que seria necessário caso conseguissem chegar aos Estados Unidos”. Em todos os casos, a soberania suplantou os direitos de quem busca asilo.

Cerca de 200 pessoas morrem todos os anos tentando atravessar o deserto para chegar aos EUA – consequência direta das medidas tomadas pelo governo estadunidense para impedir que os migrantes consigam passar por locais seguros. Esses números mantiveram-se inalterados mesmo com a diminuição da imigração.

Esses exemplos são uma mostra da mais indigna omissão da responsabilidade de promover os direitos humanos – inclusive o direito à vida – e contrastam de modo flagrante com a liberdade de fluxo dos capitais que mencionamos antes.

Tais controles de imigração também contrastam cruamente com a quase livre circulação de armas convencionais – como armas leves e de pequeno porte – através de fronteiras. Centenas de milhares de pessoas foram mortas, feridas, estupradas ou forçadas a fugir de suas casas em consequência desse comércio. O comércio de armas também está diretamente ligado à discriminação e à violência baseada em gênero, que afetam desproporcionalmente as mulheres. O descontrole na circulação de armas tem fortes implicações para os esforços de consolidação da paz, da segurança, da igualdade de gênero e do crescimento econômico. Os abusos são em parte alimentados pela facilidade com que as armas são livremente compradas, vendidas, trocadas e remetidas para todo o mundo – acabando muitas vezes nas mãos de governos abusivos e de suas forças de segurança, de senhores da guerra e de gangues criminosas. Trata-se de um negócio extremamente lucrativo – 70 bilhões de dólares ao ano –, o que explica os esforços das partes interessadas em manter esse comércio desregulado. Quando este relatório estiver sendo impresso, os principais Estados exportadores de armas estarão prestes a iniciar as negociações para um tratado sobre o comércio de armas. Nossa demanda é de que as transferências devam ser proibidas sempre que houver um risco substancial de que essas armas sejam usadas para cometer violações do direito internacional humanitário ou graves violações do direito internacional dos direitos humanos.

O fluxo de informações

Se algo positivo pode ser tirado desses exemplos é o próprio fato de termos conhecimento deles. Por meio século, a Anistia Internacional tem documentado violações dos direitos humanos em todo o mundo, utilizando todos os recursos disponíveis para impedir e prevenir abusos e para proteger nossos direitos. A globalização das comunicações está criando oportunidades que os fundadores do movimento moderno de direitos humanos jamais teriam imaginado. Existem cada vez menos coisas que os governos e as corporações podem fazer para esconderem-se atrás dos muros da ‘soberania’.

Novas formas de comunicação estão entrando em nossas vidas de uma maneira arrebatadora. Desde 1985, quando foi criado o primeiro nome de domínio ponto com, até hoje, quando 2,5 bilhões de pessoas têm acesso à internet, as mudanças têm avançado a uma velocidade surpreendente. Em 1989, Tim Berners-Lee propôs que a recuperação de informações fosse parte da internet, o Hotmail nasceu em 1996, os blogs em 1999 e a Wikipedia foi lançada em 2001. Em 2004 surgiu o Facebook, seguido pelo YouTube um ano depois. Ao mesmo tempo, registrava-se o bilionésimo usuário da internet, que seria, “do ponto de vista estatístico, provavelmente uma mulher de 24 anos de Xangai”. Em 2006 vieram o Twitter e a versão chinesa do site censurado da Google, o Gu Ge. Em 2008 mais pessoas usavam a internet na China do que nos Estados Unidos. Nesse mesmo ano, ativistas que trabalhavam com jornalistas colaborativos quenianos desenvolveram um site denominado Ushahidi – palavra que significa “testemunho” em swahili – criado inicialmente para mapear denúncias de violência pós-eleitoral no Quênia, mas que, desde então, transformou-se numa plataforma utilizada em todo o mundo com a missão de “democratizar a informação”.

Vivemos em um mundo repleto de informações. Os ativistas dispõem das ferramentas para fazer que as violações não permaneçam ocultas. A informação cria o imperativo de agir. Vivemos um momento crucial: continuaremos a ter acesso a essas informações ou os Estados, em conluio com outros atores poderosos, impedirão esse acesso? A Anistia Internacional quer assegurar-se de que todos disponham das ferramentas para acessar e compartilhar informações, bem como para desafiar o poder e a soberania quando mal usados. Com a internet, é possível construirmos um modelo de cidadania global. A rede é um contraponto aos conceitos de ‘soberania’ e de ‘direitos dependentes de cidadania’.

A ideia que Martin Luther King Jr expressou de modo tão eloquente ao falar de uma “rede inescapável de mutualidade” e de um “tecido único do destino” foi abraçada e professada por muitos grandes pensadores e defensores de direitos que vieram antes e depois dele. Agora chegou a hora de integrá-la ao nosso próprio modelo de cidadania internacional. O conceito africano de ‘Ubuntu’ exprime essa ideia de maneira mais clara: “Eu sou porque nós somos”.

Ubuntu é a conexão que une a todos nós, é não permitir que fronteiras, muros, oceanos e retratos de inimigos como sendo “o outro” poluam nosso sentimento natural de justiça e de humanidade. Neste momento, o mundo digital nos conecta a todos por meio da informação.

Empoderamento e participação

É simples: o caráter aberto do mundo digital equilibra o jogo e permite que muito mais pessoas tenham acesso às informações de que precisam para desafiar governos e corporações. Temos um instrumento que incentiva a transparência e a prestação de contas. Informação é poder. A internet tem o potencial de empoderar significativamente todos os sete bilhões de pessoas que hoje habitam o planeta. É uma ferramenta que nos permite enxergar, documentar e contestar abusos contra os direitos humanos onde quer que aconteçam. Permite-nos compartilhar informações de modo que trabalhemos juntos na solução de problemas, na promoção da segurança humana e no desenvolvimento das pessoas, realizando a promessa dos direitos humanos.

O abuso da noção de soberania do Estado é o contrário disso. Trata-se de erguer muros, de controlar as informações e a comunicação e de esconder-se atrás de leis de segredo de Estado e de outras formas de concessão de privilégios. O discurso usado para legitimar a necessidade de soberania é o de que as ações que os governos decidem tomar não competem a ninguém além do próprio governo – contanto que o governo atue dentro de suas fronteiras, não se pode contestá-lo. São os poderosos exercendo seu poder sobre quem não o tem.

O poder e as possibilidades do mundo digital, porém, são imensos. E como a tecnologia tem valor neutro, essas possibilidades podem tanto propiciar ações que sejam condizentes com a construção de sociedades que respeitem os direitos humanos, quanto ações que sejam contrárias a esses direitos.

Para a Anistia Internacional, cuja história fundamenta-se na defesa da liberdade de expressão, é interessante perceber o que os governos fazem quando não conseguem controlar essa liberdade e decidem manipular o acesso à informação. Em nenhuma outra circunstância isso é tão evidente quanto nas ações judiciais e nas hostilidades contra blogueiros nos mais diversos países, desde o Azerbaijão até a Tunísia, desde Cuba até a Autoridade Palestina. No Vietnã, por exemplo, blogueiros famosos como Nguyen Van Hai, conhecido como Dieu Cay, Ta Phong Tan, autora do blog “Justiça e Verdade”, e Phan Thanh Hai, conhecido como AnhBaSaiGon, foram a julgamento em setembro acusados de “fazer propaganda” contra o Estado. Foram sentenciados, respectivamente, a 12, 10 e 4 anos de prisão, com três a cinco anos de prisão domiciliar depois que saírem da cadeia. A audiência durou apenas algumas horas, e seus familiares foram hostilizados e detidos para que não pudessem assisti-la. O julgamento foi adiado por três vezes, a última porque a mãe de Ta Phong Tan havia morrido depois de atear fogo ao próprio corpo em frente a um prédio do governo para protestar contra o tratamento que sua filha estava recebendo.

Entretanto, prender pessoas que exercem seu direito à liberdade de expressão e que desafiam quem está no poder usando tecnologias digitais é apenas a primeira linha de defesa dos governos. Cada vez mais, os Estados tentam erguer barreiras de segurança (firewalls) em torno dos sistemas de informação e comunicação digitais. O Irã, a China e o Vietnã tentaram desenvolver um sistema que lhes permite recuperar o controle das comunicações e o acesso às informações disponíveis no mundo digital.

Ainda mais preocupante talvez seja o fato de que vários países estão testando maneiras menos óbvias de controlar a esfera digital através de vigilância em massa e de meios mais ardilosos para manipular o acesso à informação. Os Estados Unidos, que continuam a demonstrar uma impressionante falta de respeito aos limites estabelecidos – como evidenciado pelos ataques com aviões teleguiados em várias partes do mundo – proclamaram recentemente seu direito de vigiar todas as informações armazenadas em sistema de ‘nuvens’ – arquivos de dados digitais na internet não vinculados a domínios territoriais. Para que fique claro, essa vigilância inclui informações que são propriedade de indivíduos ou de empresas que não são radicados nos Estados Unidos nem estão em seu território.

A batalha pelo acesso à informação e pelo controle dos meios de comunicação está só começando. O que pode fazer então a comunidade internacional para mostrar seu respeito pelas pessoas que, de maneira tão corajosa, arriscaram suas vidas e liberdades para se mobilizar durante os levantes no Oriente Médio e no norte da África? O que podemos fazer para mostrar solidariedade a Malala Yousafzai e a todos que têm coragem de ir à luta e dizer “basta”?

Podemos exigir que os Estados garantam que todas as pessoas que eles governam tenham acesso significativo ao mundo digital – de preferência, por meio de internet de alta velocidade a preços razoáveis, seja em dispositivos móveis, como telefones celulares, seja em computadores de mesa. Assim, os Estados estariam cumprindo um dos princípios de direitos humanos articulado no artigo 15 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: “Gozar dos benefícios do progresso científico e de suas aplicações”. Além do mais, o artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que: “Todo o homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios”.

Ter acesso de qualidade à internet com certeza corresponde a desfrutar dos benefícios do progresso científico. Muitos anos atrás, os Estados criaram um serviço postal internacional, que embora organizado em âmbito nacional, estaria interconectado a todos os outros serviços postais, criando assim um sistema de correio global. Qualquer pessoa podia escrever uma carta, comprar um selo e enviá-la para outra pessoa, praticamente para qualquer lugar do mundo. Caso o carteiro não chegasse até a porta do destinatário, havia um sistema de espera postal ou entrega geral que designava um local onde a pessoa poderia retirar a carta.

E as correspondências eram consideradas privadas – independente das fronteiras que cruzassem. Essa forma de comunicação e compartilhamento de informação, que pode até parecer curiosa no mundo de hoje, transformou a maneira que nos comunicávamos, e foi concebida com base na presunção do direito à privacidade dessas comunicações. Ainda mais importante, os Estados se ocuparam de garantir que o serviço estivesse disponível a toda a população. E embora não reste dúvida de que muitos governos usaram seu acesso ao correio para violar correspondências privadas, eles não questionaram o princípio do direito à privacidade dessas comunicações. Em inúmeros países, esse sistema possibilitou que as pessoas compartilhassem informações e fortalecessem laços familiares e comunitários.

Atualmente, o acesso à internet é crucial para garantir que as pessoas possam comunicar-se, bem como para assegurar seu acesso à informação. Transparência, acesso à informação e a capacidade de participar de debates e decisões políticas são fundamentais para a construção de uma sociedade que respeite direitos.

Poucas ações governamentais podem ter implicações positivas tão imediatas, poderosas e abrangentes para os direitos humanos.

Todo governo do mundo terá de tomar uma decisão. Usará esta tecnologia de valor neutro para reivindicar seu poder sobre as pessoas ou a usará para empoderar e promover a liberdade das pessoas?

O advento da internet e sua penetração global – através de telefones celulares, cibercafés e computadores acessados de escolas, bibliotecas, locais de trabalho e residências – oferecem enormes possibilidades de empoderar as pessoas para que elas reivindiquem seus direitos.

O futuro que queremos

Os Estados têm a oportunidade de aproveitar este momento para assegurar que todas as pessoas sob seu governo possam usufruir da internet de modo significativo e a preços acessíveis. Podem ainda apoiar a criação de muitos outros espaços, como bibliotecas e centros comunitários, onde as pessoas tenham acesso à internet de modo gratuito ou com valor reduzido.

É essencial que os Estados certifiquem-se de que as mulheres – que constituem apenas 37 por cento das pessoas com alguma forma de acesso à internet – possam participar ativamente desse sistema de informação e, por conseguinte, das ações e decisões que estão sendo tomadas no mundo em que elas vivem. Como mostra um novo relatório produzido pela ONU Mulheres, pela Intel e pelo Departamento de Defesa dos EUA, o acesso à internet caracteriza-se por uma grande lacuna de gênero em países como Índia, México e Uganda. Isso indica que os Estados deverão conceber sistemas que permitam o acesso à internet a partir de residências, escolas e locais de trabalho, uma vez que lugares como cibercafés são impraticáveis para aquelas mulheres que não podem sair de casa por motivos religiosos e culturais.

Os Estados também devem esforçar-se para erradicar a discriminação social e os estereótipos negativos das mulheres. Uma mulher indiana formada em engenharia contou aos autores do relatório que ela foi proibida de usar o computador, pois “temiam que, se ela o tocasse, alguma coisa poderia dar errado”. Outros depoimentos mostravam que alguns maridos impediam suas esposas de usar o computador da família para elas não correrem o risco de ver algum conteúdo sexual impróprio. Esse é um dos motivos citados para explicar por que somente 14 por cento das mulheres do Azerbaijão já acessaram a internet, ao passo que 70 por cento dos homens já utilizaram a rede.

Ao reconhecer o direito das pessoas de usar a internet, os Estados estarão cumprindo suas obrigações relativas à liberdade de expressão e ao direito à informação. Contudo, isso deve ser feito de maneira que respeite o direito à privacidade.

Caso contrário, estarão sendo criadas duas classes de pessoas, tanto em nível nacional quanto global: uma em que as pessoas terão acesso às ferramentas de que precisam para reivindicar seus direitos e uma em que elas ficarão para trás.

Conhecimento, informação e capacidade de expressão significam poder. Estados que respeitam direitos não têm medo do poder. Estados que respeitam direitos promovem o empoderamento. E a natureza ilimitada por fronteiras do mundo digital significa que todos nós podemos exercer a cidadania global ao usar essas ferramentas para promover o respeito aos direitos humanos tanto perto de nossa casa quanto em solidariedade a quem vive muito longe de nós.

As formas tradicionais de solidariedade podem ter um impacto muito maior quando se tornam ‘virais’. Um exemplo disso foi a mobilização de milhares de ativistas em favor de 12 pessoas na 10ª campanha “Escreva por Direitos” da Anistia Internacional, uma maratona mundial de cartas realizada em dezembro de 2012. Trata-se do maior evento de direitos humanos do mundo, que, nesse último ano, incluiu e-mails, petições digitais, mensagens de texto, faxes e tweets que geraram dois milhões de ações manifestando solidariedade, dando apoio e contribuindo para a libertação de pessoas que foram presas simplesmente por suas opiniões.

Na Anistia Internacional, enxergamos na internet as mesmas promessas e possibilidades radicais que nosso fundador, Peter Benenson, vislumbrou há mais de 50 anos: de que as pessoas possam trabalhar juntas e superar fronteiras para exigir liberdade e direitos para todos. O sonho de Benenson foi considerado uma das maiores loucuras de nosso tempo, mas muitos ex-prisioneiros de consciência devem sua vida e sua liberdade a esse sonho. Estamos prestes a criar e a realizar outro sonho que alguns podem considerar louco. A Anistia Internacional assume este desafio e conclama os Estados a reconhecer que vivemos num mundo diferente e a criar os instrumentos que empoderem toda a humanidade.

Salil Shetty, secretário-geral

Fonte: Amnesty

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Foram 101 inscrições de 16 estados diferentes do Brasil. Em uma escolha difícil, a comissão avaliadora selecionou todos os candidatos que estavam aptos, de...
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