Religiosos belgas saíram da Europa após suspeitas de abusos de crianças; um deles acumula acusações também no Brasil
Um dos padres, Marc Dacuypere, é responsável pela Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de Mata Escura, Salvador (BA), e capelão em uma escola católica de ensino regular da capital baiana. O outro padre, Jan Mathieu Van Dael, da ordem dos sacerdotes Sagrado Coração de Jesus (SCJ), é acusado de abusar de adolescentes brasileiros em uma instituição beneficente que possui, na praia de Pernambuco, em Caucaia, na região de Fortaleza (CE).
Os dois padres estão no Brasil desde o início dos anos 1990. Entre 2010 e 11, ambos foram à Bélgica responder por denúncias de abuso sexual contra crianças abrigadas em instituições católicas daquele país, nas décadas de 70 e 80. Porém, os dois foram beneficiados com a prescrição da punição dos crimes pelas leis locais e puderam retornar ao Brasil, onde continuaram trabalhando livremente, apesar de alertas feitos pelo Bispado de Bruges e pela Rede de Sobreviventes de Pessoas Abusadas por Padres (SNAP) sobre os riscos que as crianças brasileiras estariam correndo.
Padre é suspenso pela igreja belga
Na última terça-feira, 25, Marc Dacuypere foi afastado pela igreja belga. O bispo de Bruges, Josef De Kesel, decidiu suspendê-lo preventivamente até que se explique, a uma comissão de peritos especializados em crimes sexuais, sobre a acusação de ter abusado de um menino e uma menina na década de 80, quando era professor de uma escola católica da região. Em 2010, Dacuypere foi chamado para responder sobre a acusação, negou tudo, mas o processo não foi concluído devido à prescrição da punição dos crimes prevista pela legislação belga.
“O bispo lhe impôs uma suspensão preventiva, medida que permanecerá até que a investigação seja concluída”, disse à imprensa belga o porta-voz do bispo, Peter Rossel. Ele lembrou que as acusações foram barradas e, por isso, a investigação foi abandonada em 2010. Na ocasião, segundo ele, De Kesel alertou as autoridades religiosas brasileiras sobre os riscos do retorno de Marc Dacuypere ao País.
O “dossiê Marc D.”, como o caso é chamado na Bélgica, veio à tona novamente devido à revelação de outros dois casos de religiosos, acusados de pedofilia, transferidos de paróquias por De Kesel. A sociedade belga passou a pressionar o bispo para que esclarecesse o caso e uma comissão de peritos da igreja foi criada para analisar as denúncias. Enquanto isso, Marc fica afastado das suas atividades religiosas.
Arcebispo defende padre
No Colégio Marista São Marcelino Champagnat, de Patamares, Salvador (BA), que mantém classes de ensino maternal, infantil, fundamental e médio, o diretor José Jorge Ribeiro Meirelles disse desconhecer as acusações contra “padre Marcos”, como é conhecido o capelão da escola.
“Não sei nada disso e não posso comentar o assunto”, disse ele, desligando o telefone. Mas o arcebispo de Salvador, Primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger, defendeu Marc Dacuypere, dizendo não haver qualquer restrição contra o padre, que já foi responsável por três paróquias e um centro educacional e profissional de crianças de dois a seis anos de idade.
Em carta enviada à reportagem do Terra, Krieger diz que, desde que chegou à Arquidiocese de Salvador, em 2011, nunca ouviu comentários desrespeitosos contra padre Marc. “Não ouvi falar nada contra a pessoa do Revmo. Sr. Pe. Marc Filip Decuypere, quer referente ao presente quer referente ao passado. Ele mesmo me colocou a par de acusações que, na Bélgica, pesaram sobre sua pessoa; para responder a elas, esteve duas vezes em seu país, em 2010 e 2011. Dessas acusações, nada resultou contra ele”, afirmou Krieger.
“As referências que neste tempo de minha permanência em Salvador ouvi a respeito desse sacerdote foram sempre positivas, com destaque para o seu zelo pastoral e sua atenção aos mais necessitados”, afirmou Krieger, lembrando também que Marc foi elogiado pelo cardeal Geraldo Majella Agnelo. “Quando era arcebispo, ele assinou uma declaração ressaltando que Pe. Marc sempre mereceu a admiração dos outros sacerdotes, oferecendo um ministério de testemunho com irrestrita aprovação das comunidades”.
Marc Dacuypere não quis falar com a reportagem. No dia 19 de novembro, ele pediu afastamento de suas funções no Brasil e viajou para a Bélgica, onde, nesta terça-feira, 25, foi suspenso de suas atividades pelo bispo de Bruges, Josef De Kesel.
Padre suspeito cuida há décadas de abrigo de adolescentes
O outro padre, Jan Mathieu Van Dael, é responsável há mais de 20 anos pelo Sítio Esperança da Criança, um abrigo com dezenas de adolescentes pobres, na praia de Pernambuco, em Caucaia, próximo a Fortaleza (CE). O Conselho Tutelar de Caucaia recebeu esta semana mais uma denúncia contra Jan, agora pelo disque 100, da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, e deverá vistoriar a entidade beneficente ainda nesta semana.
A instituição funciona de forma clandestina há quase dez anos, sem atualização de cadastro no sistema de entidades sociais do município e oficialmente estaria fechada desde 2013, informou a Prefeitura de Caucaia. Não é a primeira vez que o Conselho Tutelar de Caucaia apura denúncias contra o abrigo de “Pai Jan”. “Já houve outras denúncias, mas os meninos deixavam a entidade e desapareciam quando iam confirmá-las”, contou o conselheiro tutelar James Barros. “Houve uma vez que até a Polícia Federal foi lá, mas acho que nada foi comprovado”.
Jan foi acusado por cinco homens, entre 38 anos e 46 anos, sem ligações entre si, de cometer abusos quando eles eram internos de abrigos da Igreja Católica na Bélgica, na década de 1970. Devido às denúncias, por 12 anos Jan foi transferido de paróquias da Bélgica, até viajar para o Brasil em 1989, indo inicialmente para o Rio de Janeiro, de onde também teve de sair, até chegar a Caucaia, onde fundou o Sítio Esperança da Criança.
Em 2010, Jan respondeu pelas acusações feitas pelas cinco vítimas, mas a punição pelos crimes foi prescrita pela legislação belga e ele retornou ao Brasil. Autoridades civis e religiosas brasileiras foram advertidas pela Igreja Católica belga e pela associação Rede de Sobreviventes dos Abusos Praticados por Padres (SNAP) de que as crianças brasileiras estariam correndo riscos, mas, mesmo assim, o abrigo de Jan não sofreu qualquer restrição de funcionamento.
Segundo a SNAP, isso ocorria porque sua instituição, chamada de Sítio Esperança da Criança, “está localizado em uma área remota, longe de qualquer controle social”. Em uma carta enviada à embaixada brasileira em Bruxelas, a SNAP pede para a Polícia Federal (PF) “realizar uma investigação completa sobre os crimes de um homem que foi acusado de abuso sexual de menores, tanto no seu país como na Bélgica”.
Pai Jeanne
Apesar disso, os supostos abusos cometidos por padre Jan no Brasil não foram investigados ou comprovados, mas duas jovens voluntárias belgas que vieram ao País trabalhar no abrigo de Caucaia retornaram à Bélgica após constatarem que Jan também abusava de jovens brasileiros.
Elas contaram à Gazeta de Antuérpia que meninos brasileiros relataram abusos e que Jan costumava gastar altas somas de dinheiro em roupas de grife com seus adolescentes “preferidos”. Vítimas do padre contaram que o chamavam de “Pai Jeanne”, devido à sua preferência por meninos e ao hábito de colar fotos de rapazes na parede do quarto.
Arcebispo diz que não tem ligação com padre
Padre Jan não foi localizado pela reportagem. Nenhum dos números de telefones que seriam dele e de seus superiores foram atendidos. No site da Arquidiocese de Fortaleza, padre Jan está na lista de párocos e presbíteros, mas o arcebispo de Fortaleza, Dom José Antônio Tosi Marques, diz que ele não tem ligação com sua arquidiocese.
“Ele não é ligado a nós, ele é de uma ordem, do Sagrado Coração de Jesus (SCJ). Já ouvi falar dele, mas não sei o que ele faz”, afirmou. “Trabalho há mais de 23 anos aqui e nunca vi esse padre”, disse a coordenadora de comunicação da arquidiocese, Marta Andrade.
Segundo a assessoria da arquidiocese, o responsável pelo padre no Brasil seria o padre Francisco Belarmino Gomes, líder da SCJ na região, mas ele também negou qualquer relação com o padre. “Eu soube da existência dele, mas o vi apenas uma vez. Ele é da SCJ, mas não é ligado à ordem brasileira, possivelmente é da SCJ da Bélgica”, afirmou. A reportagem enviou e-mail para a sede da SCJ de Roma, mas não houve resposta até esta quarta-feira, 26.