Pandemia mata anciões tribais e cria crise cultural para indígenas americanos

O vírus levou embora primeiro a avó Delores, silenciando uma voz de 86 anos que cantava canções e contava histórias dos lakota. Então foi a vez do tio Ralph, estoico veterano da Guerra do Vietnã.

E, logo após o Natal, mais dois anciões da família Taken Alive foram sepultados na pradaria congelada do Dakota do Norte: Jesse e Cheryl, marido e mulher que morreram com um mês de diferença um do outro.

“É uma coisa assombrosa”, comentou o filho mais velho do casal, Ira Taken Alive. “A quantidade de conhecimento que eles tinham, as conexões com nosso passado.”

Essas conexões estão sendo cortadas uma a uma à medida que o coronavírus dizima os anciões indígenas americanos, cobrando um preço incalculável dos laços linguísticos e tradicionais que se estendem das gerações mais velhas às mais jovens.

“É como se estivéssemos sofrendo uma queima de livros cultural”, explicou Jason Salsman, porta-voz da nação Muscogee (Creek), no leste do Oklahoma. Seus avós contraíram o coronavírus, mas sobreviveram.

“Estamos perdendo um arquivo histórico, enciclopédias inteiras. Qualquer dia destes não terá sobrado ninguém a quem transmitir esse conhecimento.”

A perda dos anciões tribais ganhou proporções de uma crise cultural porque a pandemia vem dizimando indígenas americanos e do Alasca em ritmo quase duas vezes superior ao dos brancos, intensificando as consequências já mortais de um sistema de saúde em frangalhos e de gerações de promessas nocivas e não cumpridas do governo americano.

A morte dos anciões Muscogee sobrecarregou o programa de sepultamentos da tribo. Eles eram avós e mikos —líderes tradicionais que conheciam os preparativos para as cerimônias anuais do milho verde e sabiam alimentar o fogo sagrado que seus antepassados carregaram para Oklahoma seguindo a Trilha das Lágrimas. Uma pequena igreja metodista na reserva recentemente perdeu três tias-avós queridas que costumavam levar doces escondidos e sorrisos para crianças irrequietas durante os cultos dominicais.

“São coisas que nunca vamos poder recuperar”, disse Salsman.

Agora, nações tribas e grupos de voluntários estão fazendo esforços para proteger seus anciões, encarando isso como uma missão de sobrevivência cultural.

Mulheres navajos começaram uma campanha para levar refeições e álcool em gel para trailers e casas isoladas no deserto, sem água corrente, onde as quarentenas e os fechamentos de centros comunitários deixaram idosos isolados. Alguns dos idosos agora vêm afixando folhas de cartolina colorida às suas janelas: verde para assinalar “tudo OK”, vermelho para pedir socorro.

No oeste de Montana, voluntários comandados por uma funcionária de supermercado preparam refeições com peru e pacotes com itens de higiene pessoal para entregar a anciões da nação Blackfeet. No Arizona, os apaches de White Mountain mandaram termômetros e oxímetros de pulso e ensinaram jovens a monitorar os sinais vitais de seus avós.

Em todo o país, tribos indígenas agora estão colocando anciões e pessoas fluentes nas línguas indígenas no topo da fila de vacinação. Mas o esforço enfrenta obstáculos enormes.

Os idosos que vivem em locais remotos muitas vezes não têm meios de transporte para chegar aos hospitais ou clínicas onde são aplicadas as vacinas.

E há uma desconfiança profunda em relação ao governo entre uma geração que foi sujeita a ensaios médicos sem seu consentimento, mandada para escolas internas contra sua vontade e castigada por falar sua própria língua, em uma campanha de assimilação forçada que se prolongou por décadas.

A pandemia começou há cerca de um ano, mas ativistas dizem que ainda não foi feita uma contagem confiável dos anciões indígenas mortos pela Covid. Eles dizem que as mortes desses anciões são minimizadas ou contabilizadas incorretamente, especialmente no caso dos que vivem fora das reservas ou em áreas urbanas, caso de cerca de 70% dos indígenas americanos.

Para agravar o problema, as autoridades sanitárias tribais dizem que a partir do momento que são transferidos dos sistemas de saúde menores das reservas para hospitais maiores, com unidades de terapia intensiva, os indígenas americanos podem desaparecer, na prática.

“Ficamos sem saber o que é feito deles, até darmos de cara com um anúncio fúnebre”, contou Abigail Echo-Hawk, diretora do Instituto de Saúde Indígena Urbano.

O vírus já matou pessoas fluentes na língua choctaw e costureiras de roupas tradicionais do Bando do Mississippi de indígenas choctaw. Levou embora a matriarca de uma família do grupo Tulalip no estado de Washington, e depois sua irmã e seu cunhado.

Matou também um ex-presidente da nação Yocha Dehe Wintun, na Califórnia, que passou décadas lutando para preservar as artes e a cultura indígenas. Fez mortos entre membros do Movimento Indígena Americano, entidade fundada em 1968 que se tornaria a mais radical e conhecida organização de defesa dos direitos civis dos indígenas americanos.

Na nação navajo, onde 565 das 869 mortes já sofridas na reserva são de pessoas com 60 anos ou mais, a pandemia devastou as fileiras de “hataalii”, xamãs tradicionais de ambos os sexos.

Quando o vírus explodiu na nação navajo, os curandeiros tradicionais, que usam rezas, canções e ervas em seus tratamentos, tentaram proteger-se com máscaras e luvas. Envolveram objetos cerimoniais em plástico. Colocaram um vidro de álcool em gel diante de cada moradia tradicional.

Mas as pessoas não paravam de vir, buscando ajuda para lidar com sua dor ou orações pelo bem de seus parentes doentes. E os curandeiros adoeceram também. Agora as reuniões virtuais de membros da Associação Diné Hataalii, que reúne curandeiros e curandeiras navajos, incluem informações sobre as mortes mais recentes do grupo, disseram alguns membros. A lista de mortos agora inclui o avô e a tia de Avery Denny, que tinham respectivamente 75 e 78 anos. Ambos morreram do vírus.

“Quando eles nos deixam, todo o conhecimento que acumularam se perde para sempre e não pode ser recuperado”, disse Denny, membro da associação e professor no Diné College. “Tudo se perde.”

 

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