Quantas ervilhas carregamos?

Realizei a leitura da história “A Princesa e a Ervilha”, depois da leitura as crianças puderam dar suas impressões, entretanto o que mais ficou marcado foi o fato da quantidade de colchões em cima de uma ervilha e essa permanecer intacta. Convidei as crianças para desenharmos, com um desafio: teria que ter uma quantidade de colchões, mas sem esquecer-se da ervilha.

As crianças foram desenhar na folha e eu na lousa. Após o desenho de todos, fiz novos questionamentos sobre o que tinham achado da história e neste momento o desenho que eu havia feito na lousa retratando uma das passagens do livro, surge um comentário: “Professora se ela é uma princesa deveria arrumar esse cabelo, o cabelo dela está feio, precisa ir ao cabelereiro”. 

Perguntei se mais alguém pensava como a amiga. Neste momento, eis que Tauã com a voz empoderada, diz: “A minha mãe tem o cabelo assim, desse jeito, a minha vó também tem o cabelo assim, sabe porque? Porque eu sou negro!” 

A fala do Tauã preencheu o silêncio que se instaurou, as crianças se olharam, alguns reafirmaram que o Tauã era negro, como uma descoberta, ou uma revelação. 

O Tauã fez os colegas perceberem que haviam lançado um olhar preconceituoso na observação do cabelo da princesa, ao mesmo tempo em que muito provavelmente tomou consciência desses olhares e com coragem fez uma denuncia.  

Infelizmente pela correria do dia-a-dia não documentei na época (meados do mês de junho de 2018) esse momento tão importante, logo na sequência fizemos algumas conversas que pautavam sobre os estereótipos de princesa, características físicas, entre outros conceitos que foram surgindo. Assim como continuei trabalhando as histórias com a temática étnica racial até o fim do ano.    

Passado algum tempo desta aula, que por muito me vem à memória, hoje já sem a riqueza de detalhes, senti necessidade de retornar a ela, para dialogar comigo enquanto profissional e com outras pessoas que mesmo em cima de inúmeros colchões, percebe a ervilha, ou as ervilhas.

No exercício de ir e vir deste relato, regresso com valiosas contribuições, várias mãos e olhares sob o mesmo tema. Trazendo reflexões, intervenções, provocações que a passagem relatada faz suscitar: 

Qual é a concepção de beleza que as crianças têm?

Como são construídos esses conceitos de beleza?

Quais têm sido as imagens e informações que as crianças pequenas têm encontrado na televisão, revistas, nas paredes da escola, nos livros, nas músicas?

A autoimagem da criança pequena é construída, a partir das informações que ela recebe do meio exterior, as imagens, as falas das pessoas, nas interações com outras crianças e adultos, até mesmo o silêncio ajuda a construir a sua subjetividade do que é belo ou não. Também percebe-se como o pensamento eurocêntrico que estabelece qual é o modelo, o padrão aceito na sociedade, nas diferentes áreas do saber perpassam as crianças, sendo que esses também permeiam as relações sociais.

Será que para ser princesa é necessário usar um tipo de roupa ou ter um penteado clássico como um coque com uma tiara?

Somente o cabelo liso é belo?

Como desconstruir esses padrões e mostrar para as crianças que a beleza está nos diferentes traços  físicos e estéticos que cada  um tem?

Para modificarmos essa situação é necessário repertoriar as crianças com boas histórias, imagens, brinquedos e brincadeiras que tragam essa diversidade da beleza, tecer com elas boas conversas sobre como podemos ser belos a partir de diferentes belezas. Enaltecer as diferentes belezas étnicas ajuda a construir a autoimagem das crianças negras/indígenas, bem como colaboram para o respeito à diversidade étnica.  Também é necessário um trabalho com as famílias para que esses conceitos sejam reflexivos nos lares das crianças.  Podemos pensar em articular um trabalho com as famílias? Como poderia ser esse trabalho?

Quando o Tauã fala que a sua mãe e avó tem o cabelo assim e o porquê é o fato dele ser negro o que podemos perceber com essa narrativa?

Percebe- se que para Tauã há uma indagação que se coloca por meio da fala das crianças, pois para toda a criança a sua mãe é bela, assim como a sua família.  A fala da outra criança o faz refletir, essa princesa se parece com a minha família e comigo. Como a minha amiga fala mal do cabelo da princesa que tem um cabelo que representa a mim e a minha família?

Este relato aconteceu em uma turma de cinco anos de uma escola pública de educação infantil no município de Suzano – SP. 

Paula Regina Cursino (Arquivo Pessoal)

 

Professora Paula Regina Cursino


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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