Racismo desvaloriza festas baianas, diz antropólogo

 

Doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Ordep Serra é autor de Rumores de Festa, um estudo sobre manifestações festivas, incluindo o Carnaval.

Para ele, a Bahia está perdendo, a cada ano, um capital cultural significativo ao não dar a atenção devida a esses eventos e mais: alimentando o que considera um descaso com suas raízes também na desigualdade racial. “Esse descaso chega a ser criminoso”, diz Serra.

O seu livro Rumores de Festa é um dos poucos trabalhos sobre o conjunto das festas populares baianas. Por que a antropologia ainda fala pouco das festas?
Realmente, a gente ainda precisa dar mais atenção a essas manifestações, que são extremamente ricas. Esse é um campo aberto para os antropólogos.

As festas têm um papel importante no cotidiano da capital baiana. Até o Carnaval, são pelo menos dez.
Sim. O que me impressiona é como esse capital cultural, que é extremamente valioso, não é aproveitado de forma correta. Aliás, é ainda pior: ele consegue ser maltratado pelos gestores públicos numa demonstração de burrice impressionante. Imagine o que poderia render para a cidade a atenção, por exemplo, a uma economia que é muito própria dessas festas. Imagine o que se poderia lucrar com o incentivo a atividades como venda de produtos e de comida, para dar um exemplo.

Em relação ao aspecto da economia dessas festas, em seu livro o senhor critica a padronização das barracas.
Pois é. É uma das amostras do abandono destas manifestações. As barracas tinham um papel fundamental, inclusive do ponto de vista estético, pois mostravam o exercício da criatividade do povo. Elas tinham nomes de orixás, de caboclos e funcionavam também como ponto de encontro para vários grupos. Ocupavam um lugar muito especial no contexto das festas, como reforçar laços de fidelidade com a clientela. Mas, em nome de questões que poderiam ser tratadas de outra forma, como saúde pública, acabaram com tudo, fizeram monstros horrendos por meio da padronização. Pregam questões de saúde, mas, por outro lado, recebem patrocínio em massa da indústria de bebida para fazer eventos. É essa a educação para a saúde?

Em sua avaliação, como essas festas podem recuperar o seu prestígio?
O problema é que há uma dificuldade dos gestores públicos para entender essas manifestações. Há um desconhecimento que se transforma em coisas graves, como racismo institucional. O que explica o Mercado de Santa Bárbara não ser revitalizado? Parece que não há relação, mas, em um  estado em que o poder público fala tranquilamente em remover moradores de determinados locais e construir um muro porque eles não interessam a uma ideia de cidade ou que há genocídio de jovens negros, dá para entender que essas festas não ganham respeito porque têm a marca desses mesmos grupos excluídos. O povo de terreiro é marginalizado, e várias dessas festas começam nesses espaços.

Mesmo uma festa cívica como o 2 de Julho também tem encontrado dificuldades para a sua execução.
Isso reforça o que digo que é descaso, desconhecimento e até racismo do estado. O 2 de Julho tem como figura central os caboclos, que se misturam com o culto a esses encantados no candomblé. Como é que não se dá importância a uma manifestação desse tipo? Basta olhar a riqueza simbólica. O povo acompanha o cortejo também pela fé, coloca bilhetes nos carros dos caboclos e deixa suas oferendas. Até a expressão “vai chorar no pé do caboclo” significa que ele está ali para resolver problemas. Como é que não se dá importância a isso? Lembro que seu Agnelo, uma grande figura do candomblé baiano, contava que chegou a ver no jornal a história de um funcionário da prefeitura que estava procurando o responsável em pagar o IPTU da casa dos caboclos (risos).

Como nasceu a ideia de fazer o livro Rumores de Festa?
Ele nasceu de reflexões sobre as minhas experiências em festas de largo. Eu frequentei quando jovem várias dessas festas, embora elas não chamassem tanto a atenção de pessoas de classe média. A Festa da Conceição era uma das poucas que tinham a presença de pessoas desse grupo por conta dos estudantes de medicina que apareciam. Mas eu me tornei frequentador assíduo e chegava a dormir na areia na Festa da Boa Viagem. Tinha cada samba de roda fantástico. Eu ia também porque tinha amigos da capoeira que eram da Academia de Mestre Pastinha e ficava tranquilo (risos).

Seu livro foi publicado em 2009 e já analisava a decadência de várias dessas festas. Qual é o motivo para que algumas delas tenham desaparecido, como as lavagens da Pituba e Ondina?
Uma das explicações para mim é a marginalização da população negra da cidade. O povo negro foi fundamental para a recriação e ressignificação dessas festas. No momento em que ele começa a ser expulso de determinados locais, as festas vão decaindo. No caso da Pituba e de Ondina, as lavagens desapareceram quando o processo de elitização desses locais foi consolidado. A Lavagem de Itapuã, por exemplo, encolheu na mesma proporção em que os negros foram sendo expulsos das áreas mais nobres.

Para o senhor, a decadência das festas também pode ser explicada por um viés de exclusão racial?
Sim. Como já disse, essas festas tornaram-se o que são por conta da intervenção negra. Claro que elas, com exceção da festa de Iemanjá, são todas de origem católica e já sabemos que, durante a Idade Moderna na Europa, as festas religiosas extrapolavam as igrejas, como aqui. Mas na Bahia não há como negar a influência de ritos muito próprios da cultura afro-brasileira. Estamos falando de um catolicismo mais popular que é claramente uma religião afro-brasileira. Há um sistema de apropriação dos símbolos católicos, que é evidente,  mas que aparecem ressignificados.

É um tema que o senhor já tratou em outro estudo sobre a Lavagem do Bonfim.
A Lavagem do Bonfim é o único culto ao crucificado do mundo que não acontece num contexto de dor ou penitência. As pessoas tomam liberdades com o Senhor do Bonfim que acabam por  aproximá-lo bem mais de um padrinho do que da ideia de Filho de Deus ou Deus encarnado, que é o que ensina a doutrina católica. E não podemos nos esquecer de que ele tem uma espécie de convênio com a divindade Oxalá do candomblé, que é o rei. Claro que o povo sabe separar muito bem quem é quem, mas é um encontro que aproxima duas ideias de sagrado. Isso é muito bonito e rico.

As festas do Bonfim, Iemanjá e Santa Bárbara têm conseguido sobreviver e alcançam muita visibilidade. O que têm como trunfo?
Podemos compreender sob a perspectiva do prestígio dos santos festejados que é muito grande em relação ao povo. O Senhor do Bonfim tem esse aspecto de padrinho sobre o qual já falei que, no imaginário popular, aparece como aquele a quem se pode contar  todos os problemas e pedir ajuda. Iemanjá tem a característica de ser a única festa pública para um orixá e Santa Bárbara tem esse reforço do que chamo de convênio com Iansã, que tem o símbolo da feminilidade guerreira.

Inclusive, a festa de Santa Bárbara é uma manifestação que tem passado por várias mudanças, não é?
Sim. Essas festas populares têm essa característica de se transformarem em uma dinâmica que é muito própria e que são seus trunfos para sobreviver.

 

 

Fonte: A tarde

 

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