Radiodifusão para o povo negro

Observatório do Direito à Comunicação

 

Por: Pedro Caribé – Observatório do Direito à Comunicação

 

O processo para escolha dos novos membros do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) intensificou a necessidade de correlação entre as políticas públicas para a população negra e as políticas de comunicação. Setores do movimento negro questionam o presidente da República por escolher um candidato não identificado com a pauta racial, com apenas um voto na consulta pública, em detrimento de duas candidatas oriundas de organizações comprometidas com a pauta e apoiadas por um leque amplo de entidades, ao ponto de juntas somarem 15 votos na mesma consulta.

 

O caso da EBC ocorreu enquanto preparava a matéria para o Observatório do Direito à Comunicação sobre o capítulo da radiodifusão no informe anual da Relatoria para Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA). O documento indicou que a concentração da propriedade tem efeito similar a censura e aproximou a política regulatória as políticas sociais, em especial dos grupos historicamente discriminados.

 

A relação entre os dois temas, informe da OEA e questionamento ao Conselho da EBC, é muito tênue, e pode ser mais explorada pelas organizações e militantes comprometidos com a questão racial e a comunicação. Ambas falam de um nível de empoderamento no setor renegado aos afrodescendentes brasileiros, independente se o veículo é privado ou público: o acesso à propriedade da radiodifusão. Por isso vale menção a resolução aprovada no Grupo de Trabalho 15 da I Conferência Nacional de Comunicação: “Incentivo à criação e ao funcionamento de rádios comunitárias em áreas habitadas pela população negra e quilombola como forma de assegurar o direito a informação e cultura dessas comunidades”.

 

O acesso e desenvolvimento da propriedade da radiodifusão precisa ser encarado como crucial a participação da população negra na sociedade de informação. O acesso à internet, a participação em redes sociais e a convergência tecnológica também são fundamentais, mas não significam a anulação dos mecanismos tradicionais de dominação. Da mesma forma que o trabalho escravo continua a existir e é atrelado às grandes propriedades rurais voltadas para exportação, a invisibilidade, estereótipo e até a criminalização do negro continuarão a existir nos meios de comunicação enquanto a radiodifusão pertencer a poucas famílias no país.

 

Para a OEA a concentração da propriedade da radiodifusão é essencialmente da ordem econômica e afeta diretamente segmentos historicamente discriminados, produzindo um efeito similar a censura: o silêncio. Nesse quesito o Estado tem papel fundamental em reverter este panorama – no qual ele é co-autor – ao incluir esses grupos. Não só na redistribuição das concessões, via atenuação dos mecanismos burocráticos e econômicos, mas também ao prover condições pra o desenvolvimento dessa propriedade, seja por fontes alternativas ou diretamente pela publicidade estatal.

 

Fica já perceptível uma noção de política reparatória, mais forte ainda quando o documento cita os povos originários do continente americano. Por isso, entre as perguntas que fiz à OEA como repórter do Observatório do Direito à Comunicação estava: “O relatório toca de forma especial nos povos originários, porém as populações afrodescendentes também têm seus direitos violados no continente devido histórico de escravidão (no Brasil até o fim do séc. XIX). A avaliação para os povos originários pode ser transportado para essas populações?.”

 

A resposta – diplomática – da relatora Catalina Botero foi que tal necessidade de inclusão social pode ser estendida a outros grupos desfavorecidos. Neste caso, a relatora fez uma aproximação mais direta entre políticas sociais e políticas de comunicação. Ou seja, o combate à concentração é fundamental para promover a diversidade e pluralidade, não somente no viés cultural, no qual esses termos são popularmente adotados no Brasil, mas sim como política social.

 

Jacira, Nilza, João Jorge e o campo público

O fortalecimento do sistema público de radiodifusão é uma pauta acolhida por amplos setores dos movimentos sociais no país atualmente e os movimentos negros também embarcaram na defesa desse projeto como alternativa as restrições dos meios comerciais.

 

A EBC neste conjunto ainda estaria no hall das emissoras estatais, sob gestão controlada pelo Executivo. A recente consulta pública, um marco na abertura das decisões, resultou na escolha de três novos nomes, mas ainda são frágeis os argumentos para o presidente da República não referendar a ida de duas militantes: Jacira Silva, vinculada ao Movimento Negro Unificado (MNU) e à Comissão Nacional de Jornalistas Pela Igualdade Racial (Cojira); e Nilza Iraci Silva, presidente do Geledés, organização não governamental reconhecida internacionalmente por interligar os debates racial e de gênero.

 

O caso da EBC se configura como racismo institucional: quando condutas e comportamentos nos entes públicos inibem a participação ou acesso de grupos historicamente discriminados, mesmo sem intenção. O fato da EBC ter a presença de João Jorge, do grupo Olodum, no Conselho Curador, não isenta o veículo deste comportamento costumeiro no Estado, nem mesmo o avanço na produção de conteúdos audiovisuais comprometidos com a questão racial, em especial o programa Nova África da TV Brasil.

 

As dificuldades para inserção da comunidade negra na gestão se intensificam nas emissoras filiadas a Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), na maioria controlados pelo poder Executivo dos governos estaduais. Embora a formação da Rede Pública Nacional de Televisão, que congrega as emissoras da Abepec e a EBC, sinalize para abertura das decisões à sociedade, a organizações vinculadas à questão racial tendem a ser tratadas como secundárias para chegar nos postos de comando.

 

Neste contexto, as organizações do movimento negro têm dura missão: continuar a participar das mobilizações pelo desenvolvimento e abertura da Rede Pública Nacional e buscar veículos que possam ter autonomia a força estatal. Por isso os veículos comunitários cumprem um papel importante, ainda mais com a sinalização de que a posse da propriedade possa ser encarada diretamente como política social.

 

Porém, os meios comunitárias são invisibilizados, criminalizados e se encontram sob domínio político, em proporção crescente em relação aos privados. O acesso a essa propriedade é por mecanismos pouco transparentes e permeados de interesses que retiram autonomia das organizações sociais. As tevês comunitárias operam pelo cabo, basicamente nas grandes e médias cidades, mas indisponíveis à maioria da população negra, sem poder aquisitivo. O descrédito nesse meio se intensifica com a transição para a o Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), onde essas tevês estão excluídas dos canais do operador de rede público.

 

Já as rádios são fechadas pela Polícia Federal como as milícias do monárquicas destruíam quilombos. Além de operarem em espectro limitado, a população negra foi alijada de tal forma da política tradicional que não conta com organizações dotadas de canais para se credenciar a esses meios. É preciso estar subserviente a um (sinhô) deputado ou senador para ser legitimado as decisões do Congresso Nacional.


Políticas públicas de comunicação para a população negra

A prioridade na destinação de publicidade estatal para veículos, públicos ou privados, nos quais a posse da propriedade esteja relacionada a diversidade e pluralidade é um caminho interessante para alavancar iniciativas da população negra. Para isso, o poder público teria que começar a arcar com o ônus de reorientar a parte que lhe cabe no total das verbas publicitárias as tevês no país, 13,6%, segundo dados de 2007 da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e Fundação Getúlio Vargas.

 

O interessante é que a redistribuição destas verbas é viável nos três níveis da federação: União, estados e municípios. Ou seja, a morosidade do Ministério das Comunicações em revisar a política de financiamento para a radiodifusão comunitária ou estatal de caráter público, não justifica a mesma morosidade pelos prefeitos e governadores.

 

Ao ser encarado como direito social, o desenvolvimento da propriedade da radiodifusão poder estar atrelado aos programas agrários, educacionais, gênero, saúde e também de igualdade racial. Neste último caso, vale o exemplo recente de um povoado remanescente de quilombo na região do Médio São Francisco na Bahia, na qual a Secretaria de Promoção da Igualdade tem auxiliado a montagem de rádio comunitária no local, em processo acompanhado pela Universidade Estadual da Bahia (Uneb) campus III, na cidade de Juazeiro.

 

Porém o caso baiano é isolado e precisa ser aproximado da Assessoria Geral de Comunicação (Agecom), responsável pela política de comunicação social do governo; e da Secretaria de Cultura, responsável pelo Instituto de Radiodifusão de Estado da Bahia (Irdeb). O fato é que a questão racial tem legitimidade para revisar a destinação dos R$ 129 milhões reservados para publicidade no último ano do governo estadual baiano.


Lázaro, Netinho e a propriedade comercial

Ao final, cabe colocar os limites do modelo de propriedade comercial da radiodifusão, que opta pelo critério da audiência para agregar receitas oriundas majoritariamente da publicidade. Nessa seara a dinâmica capitalista no Brasil não abandonou o alto teor de desigualdade: uma minoria da população concentra o acesso aos bens e serviços devido o maior poder aquisitivo, por consequência a publicidade é majoritariamente destinada a esse público.

 

Este quadro tende a ser atenuado com o aumento da capacidade de consumo das classes C e D (onde está a maioria dos afrodescendentes). O que justifica em grande medida o aumento do número de negros na publicidade e com papéis de destaque nas novelas e demais conteúdos audiovisuais. Não há um histórico sólido de cidadania, quanto mais consciência racial, nos grandes empresários nacionais.

 

O ator Lázaro Ramos é o maior símbolo desse momento. Sua capacidade artística inqüestionável o credencia a ter sua imagem utilizada constantemente, mas não há como negar que o fenômeno também se dá pelo vácuo de atores negros na televisão. Imagino que a consciência racial e social demonstrada por Lázaro o faça refletir sobre isso, sem que amoleça sua moral e trajetória.

 

A mesma sorte não teve o ex-cantor e pré candidato ao senado de São Paulo pelo PCdoB, José de Paula Neto, o Netinho, ao tentar entrar para o seleto grupo de empresários da radiodifusão, bem sucedidos. A TV da Gente inaugurada no dia da Consciência Negra, 20 de novembro, de 2005, caiu no ostracismo e Netinho de Paula passou a privilegiar a atividade política. Talvez tenha experimentado na ‘pele’ que o setor da radiodifusão tem uma relação estreita com o poder político conservador, que por sua vez não pretende repartir este poderio com personalidades como o ex-cantor de pagode.

 

Enfim, Netinho de Paula simboliza que para disputar a hegemonia no setor comercial é preciso muito mais do que telespectadores em potencial ou programação atrativa. É preciso que os interesses empresariais estejam relacionados ao apoio político e/ou religioso. Por isso só a Record conseguiu ameaçar a Rede Globo nos últimos trinta anos e dificilmente a população negra será contemplada nos próximos trinta.

 

Pedro Caribé é jornalista, repórter do Observatório do Direito à Comunicação. Participou da articulação Enegrecer a Confecom, é membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e do Centro de Comunicação, Democracia e Cidadania da Facom-UFBA.

 

 

Fonte: Observatório do Direito à Comunicação

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