“Testemunhar histórias explorando o que nos conecta e encontrando ressonâncias”

“Quando acordou, sabia que não seria mais uma presa fácil. O que quer que ela decidisse fazer com o seu bebê, seria decisão sua. E, de um jeito ou de outro, levaria adiante o desejo de sua mãe de não ser enterrada em uma caixa”. Assim é Mvelo, jovem de quatorze anos mas com a cabeça de uma mulher de quarenta, personagem central do livro Sem Gentileza (2014), segundo da escritora sul-africana Futhi Ntshingila e o primeiro traduzido no Brasil.

Estupro, Aids, pobreza e tradição fazem o pano de fundo. Com título inspirado no poema “Do not go gentle”, do escritor Dylan Tomas, o livro abre com uma dedicatória: “para as crianças que vivem às margens da sociedade e que passam por dilemas colossais. Suas vozes são importantes”.

Vozes que também se apresentam em “Shameless” (Sem Vergonha), primeiro livro escrito por Futhi, que será lançado no Brasil em novembro, pela editora Figura de Linguagem. Assim como em Sem Gentileza, o personagem central é a jovem Thandiwe, que desde cedo tem que lidar com a pobreza e o abandono. Adulta, trabalha como prostituta nas ruas de Yeoville, no subúrbio de Joanesburgo. Na história temos situações de abuso e miséria a que a personagem é submetida, além da destruição da sua comunidade KwaZulu-Natal, alvo de violência do final dos anos 1980. Futhi, em sua literatura preserva a memória da vida, dos passos, das mulheres que são ignoradas pela história, servindo como testemunha dessas histórias.

A autora nasceu em Pietermaritzburg, África do Sul, em 1974, em meio ao apartheid, num país dividido pelo racismo e pelo ódio. A família é de cinco filhas mulheres, tendo o pai como único homem da casa. Como relatado na entrevista concedida à jornalista Fernanda Canofre, do Sul 21, em 2016, quando esteve em Porto Alegre para o lançamento do Sem Gentileza, durante 20 anos, a única realidade que conheceu foi a do regime de segregação racial que ditou a vida em seu país por mais de três décadas e da história de mulheres que conseguiam rir acima de tudo e seguiam em frente. Formada em Teologia e Inglês, mestre em Resolução de Conflitos, jornalista de profissão, atualmente vive em Pretória. Assim como muitas escritoras, teve seu despertar através da oralidade das histórias contadas pelas suas avós.

Com o advento da pandemia, Futhi está em casa observando o mundo mudar todos os ritmos da vida. Ritmos que o coronavírus acelerou, onde a pandemia já contaminou 850 mil pessoas, tornando a África do Sul o quinto país mais afetado do mundo.“A pandemia mostrou ao mundo um desequilíbrio e desigualdades que se prolongam por muito tempo. Econômica e ambientalmente. Minha esperança é que não apenas tomemos consciência de quão mal nos tratamos como humanidade, mas também de como tratamos a Terra. Espero que comecemos a perceber que não é sustentável dominar o poder para as poucas elites e que, trabalhando juntos, aprender uns com os outros pode levar a um desejo e equilíbrio”, observa a escritora.

Em sua rede social, deixou o seguinte recado para esses tempos de distanciamento e isolamento social: “Amigos carregando o peso da brutalidade em todo o mundo. Nós estamos observando. Uma multidão de nós de lugares que você não pensaria, lugares antigos, onipresentes e imóveis. Estamos mantendo espaço e testemunhando por você. Eles querem que você fique com raiva, sem respirar, cansado e de bruços. Eles são mais altos apenas quando você está abatido. Há um espaço em nós que permanece indestrutível, e respira a partir daí. Faça o que fizer, continue respirando. É mais escuro antes da transformação brilhar. Nós estamos observando.”

Em entrevista concedida por e-mail, para o especial Escritoras Negras do Brasil de Fato RS, Futhi fala sobre literatura, condição da mulher negra, racismo, e claro, os efeitos da pandemia.

Futhi esteve na Feira do Livro de Porto Alegre em 2016 para o lançamento do livro Sem Gentileza, que esgotou sua primeira edição e ficou entre os mais vendidos durante a Feira daquele ano (Foto: Guilherme Santos | Sul21)

Abaixo, a entrevista completa:

Brasil de Fato RS – Gostaria que você começasse contando um pouco sobre sua trajetória e encontro com a literatura.

Futhi Ntshingila – Meu primeiro encontro com contar histórias foi através de minhas avós, que costumavam nos contar histórias tradicionais antigas quando crianças. Mais tarde, quando eu aprendi a ler, estava sempre com o livro em mãos. Meu favorito era literatura de mulheres afro-americanas como Toni Morrison, Maya Angelou e Alice Walker. O trabalho delas teve ressonância comigo e me inspirou a estudar literatura inglesa na universidade, a partir daí foi uma progressão natural para eu me tornar uma escritora. Meu primeiro trabalho teve uma impressão biográfica, prestando homenagem às mulheres que me nutriram na minha juventude.

BdFRS – Como você descreveria seu trabalho?

Futhi – Meu trabalho como escritora é testemunhar histórias humanas explorando o que nos conecta e encontrando ressonâncias.

BdFRS – Qual a importância da memória no seu trabalho?

Futhi – É crucial, como ponto de referência para evitar repetir horrores de guerras e genocídio de inocentes. A memória serve para temperar a ascensão do poder faminto.

BdFRS – Quando falamos de literatura, como você avalia a literatura feita para as mulheres, especialmente as negras, o público e a divulgação? Como podemos nós democratizar mais a literatura feita por mulheres negras? Que transformação isso traz?

Futhi – Eu acho que, com o movimento do tempo, histórias de mulheres e de mulheres negras estão encontrando seu espaço ao sol. Assim como houve um tempo em que as mulheres não podiam votar ou ser vistas como líderes e agora elas são presidentes de países que lidaram decisivamente contra o coronavírus, em países como Nova Zelândia, Taiwan e Alemanha -, assim será com mulheres negras e a literatura. Vai mostrar que as mulheres negras têm algo significativo para contribuir, elas sempre têm. A dinâmica do poder as deixou de lado, mas nada pode impedir a ideia de quem chegou.

A maioria das garotas na favela foram arruinadas pelo estupro. Essas garotas carregavam um fardo sobre os ombros. Como poderiam dizer às suas mães que as pessoas em quem confiavam, os parentes, os amigos da família e os seus “tios”, amantes de suas mães, eram quem as molestava? (..) epidemia de estupro era tão disseminada que certas mães traziam crianças extremamente jovens como uma medida de precaução contra o abuso. Os “tios” evitavam crianças que eram testadas. Não queriam correr o risco de serem descobertos.
(trecho do livro Sem Gentileza)

BdFRS – Como você define o que é ser uma mulher negra no mundo?

Futhi – Como negra, sempre fui uma rainha, quer o mundo concordasse ou não. As mulheres negras devem continuar a saber quem são. Mesmo no mundo da desigualdade, sabemos no fundo quem somos. Nós carregamos o mundo de várias maneiras.

BdFRS – Como a pandemia de coronavírus afetou sua rotina e a vida de seu país? Esta pandemia está influenciando o seu trabalho? De que maneira?

Futhi – Com o corona, estou em casa observando o mundo mudar todos os ritmos da vida. Acho que sou mais cuidadosa em não ser absorvida pela onda de medo e ansiedade. Meu instinto é cuidar de mim mesma, não apenas com a prevenção de ser fisicamente infectada, mas também emocionalmente. Estou tendo calma comigo mesma. Minha escrita é mais lenta e deliberada. Quero escrever de uma maneira que não seja influenciada pela necessidade de permanecer relevante, mas de ser inspirada.

BdFRS – Qual é o papel da literatura nesse contexto?

Futhi – A narrativa sempre esteve no papel principal em qualquer contexto. É um registro criativo de eventos históricos. É a mão na luva com qualquer contexto. Estou pensando em “O amor nos tempos da cólera”, de Gabriel García Marquez. Todo evento histórico conta histórias, seja em livros ou romances de história. Tudo se move com uma história.

BdFRS – O que a pandemia pode nos ensinar? E que mundo, ou sociedade, teremos depois de uma pandemia?

Futhi – A pandemia mostrou ao mundo um desequilíbrio e desigualdades que se prolongam por muito tempo. Econômica e ambientalmente. Minha esperança é que não apenas tomemos consciência de quão mal nos tratamos como humanidade, mas também de como tratamos a Terra. Espero que comecemos a perceber que não é sustentável entregar o poder para as poucas elites e que, trabalhando juntos, aprendendo uns com os outros se pode levar a um desejo de equilíbrio.

” A violência baseada no gênero tem sido especialmente desenfreada agora com o confinamento do covid 19″ (Foto; Guilherme Santos | Sul21)

BdFRS – No Brasil e em outros países, depois do que aconteceu nos EUA, os atos anti-racistas cresceram junto com os anti-fascistas. Como você avalia esses protestos e que mudanças eles podem trazer?

Futhi – Eu acho lamentável que tenha sido necessário um assassinato público de um ser humano para fazer o mundo se mover, mas agora a revolução está sendo televisionada para que ninguém possa sentar-se confortavelmente e afirmar que não sabia. Eu acho que, apesar de que aqueles que protestam com intenções puras, estão levantando pronunciamentos poderosos para ficar, não estamos bem, o mundo não está bem. O que me preocupa são aqueles que usam protestos por suas más intenções de promover publicidade e ganhos comerciais.

BdFRS – As pessoas perderam o medo de serem racistas publicamente?

Futhi – Era de se esperar que houvesse um retrocesso da direita. Sempre existiram nos cantos, escondidos. As pessoas que sempre tiveram bons resultados com a desigualdade não querem abrir mão de seus privilégios; deve ser assustador compartilhar o que sempre tiveram como só deles. A igualdade significa opressão para eles. Não estou chocada com seus atos abertamente racistas.

BdFRS – O que é racismo para você?

Futhi – O racismo é uma sinistra discriminação sistemática e estrutural baseada na cor da pele e em um conjunto de percepções que a acompanham. Resultado da desigualdade em capital social, local de trabalho e status econômico.

BdFRS – Qual a realidade das mulheres negras na África? E como acontece o debate sobre o feminismo e as questões do machismo no continente?

Futhi – As mulheres negras na África são forjadas em uma lógica do “fazer ou morrer”, do tudo ou nada. Elas enfrentam violência desenfreada e patriarcado com base no gênero, o que aumenta outras discriminações que enfrentam. É uma interseção complexa de questões que compõem a realidade de suas lutas diárias. O feminismo é vivido sem o luxo acadêmico de anexar esta ou aquela escola de pensamento. Para muitas mulheres, o que está em questão é proteger os jovens e os vulneráveis.

O cheiro da pobreza. Um cheiro que penetrava cada peça de roupa e cada barraco nos espaços de moradia informal. Mvelo escondeu de Zola a história sórdida pela qual passou, mas uma mãe perto da morte é sensitiva. Sabia que algo terrível e feroz havia tocado a alma de sua filha.
(trecho do livro Sem Gentileza)

BdFRS – Ao ler seu livro, Sem Gentileza, você traz como pano de fundo estupro, racismo, hipocrisia religiosa, pobreza, machismo, negligência e temas de AIDS, muito próximos da realidade brasileira. Aqui também discutimos a violência doméstica e o feminícídio. Gostaria que você nos falasse mais sobre essa realidade e qual é a importância de trazer tais questões para a literatura, as diferentes formas de violência sofridas pelas mulheres em todo o mundo.

Futhi – Os temas apresentados em Sem Gentileza refletem a situação enfrentada pelas mulheres ouvidas. A violência baseada no gênero tem sido especialmente desenfreada agora com o confinamento da covid-19. É uma triste realidade que está afetando muitas mulheres. A importância de relatar, expor, faz parte do processo de contar histórias, porque cada história está ligada às realidades de seu cenário, mas também serve para que as leitoras saibam que não estão sozinhas, que podem estar a quilômetros de distância, mas que seu espírito humano é resiliente em todos os lugares. Pode ser afirmação para qualquer um saber que não está sozinho. As questões são levantadas também para criar consciência e ser um espelho para a sociedade.

BdFRS – Quais escritores você leu e quais você recomenda?

Futhi – Meus escritores favoritos de todos os tempos são Toni Morrison – eu recomendo “Deus ajude a criança” – Maya Angelou e Alice Walker. Minhas leituras recentes para recomendar são: Um Lugar Bem Longe Daqui, de Delia Owens; A Dança da Água, de Ta-Nehisi Coates; e Minha irmã, a serial killer, da nigeriana Oyinkan Braithwaite.

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