Durante muito tempo o continente africano foi visto como um vasto território sem história, aquela com H maiúsculo. Ninguém menos do que Hegel afirmou, ainda no século 19, que não haveria nem história, nem razão naquele continente.
Essa era uma percepção milimetricamente construída para garantir que não existisse nenhum tipo de condenação moral às atrocidades que foram feitas na África em nome de ideias bem determinadas de civilização e de progresso defendidas por uma Europa branca. Não ter história significava suspender da condição humana os milhares de homens e mulheres africanos, e assim seguir sem muita culpa num projeto abertamente colonial.
Era por não terem história que jovens foram sistematicamente amputados pelos homens que agiam em nome do rei belga Leopoldo 2º. Era por não terem história, que os países europeus se reuniram e decidiram fatiar o continente africano, definindo qual porção seria colonizada por cada país. Era por não terem história, que os africanos da Namíbia foram testados e descartados como ratos de laboratório pelo governo alemão, naqueles que foram os primeiros campos de concentração do mundo.
E a ideia mentirosa da África sem história atravessou o Atlântico e chegou aqui, em terras brasileiras, se atualizando ao longo do tempo. Em parte, a escravização de milhares de africanos estava respaldada nessa condição “quase humana” que lhes era atribuída. Era justamente por não serem assim, tão humanos, que os feitos e vidas dos africanos e de seus descendentes foram silenciados.
Acontece que essa condição de “gente sem história” se manteve mesmo depois que a escravidão foi abolida. Quando muito, os africanos interessavam pelo tempero que deram às comidas brasileiras, pelo ritmo de seus tambores ou pelo afeto que transformara para sempre o português aqui falado.
Castelo de privilégios
Por muito tempo seguimos fazendo uma história do Brasil na qual não havia espaço para as histórias de africanos nem da África. Uma história sempre tensionada pelos escritos e ações de homens e mulheres negros, descendentes diretos dos africanos e africanas que construíram boa parte do que hoje chamamos de Brasil. Mas, para manter o castelo de privilégios da supremacia branca brasileira, esse tensionamento era (e continua sendo) classificado como “ações militantes”, que em tese estavam desprovidas de respaldo científico.
Mas junto com a militância negra, é preciso reconhecer que existem homens brancos que conseguem enxergar esse castelo de privilégios e se afastar dele. Alberto da Costa e Silva foi um deles. Um homem que pensava e escrevia uma história antirracista, muito antes desse termo entrar em voga, fazendo um bom uso do seu lugar no mundo.
Por um lado, Alberto da Costa e Silva teve uma vida que se assemelha a de outros importantes intelectuais brasileiros oriundos de uma determinada classe social e pertença racial. Estudou em boas escolas, formou-se diplomata, viajou o mundo representando o Estado brasileiro, manteve a tradição paterna e também se fez poeta, além de ensaísta e memorialista, ganhando prêmios e reconhecimento nacional e internacional, tendo sido não só integrante, como presidente da Academia Brasileira de Letras.
Mas é como historiador que Alberto da Costa e Silva se diferencia do seu lugar de origem, lançando um olhar muito mais plural e complexo para o presente e para o passado. Os anos em que foi diplomata na Nigéria e no Benin devem ter sido profundamente transformadores para que ele conhecesse com mais profundidade a história desses países, bem como passasse a ver o Brasil com outros olhos, reconhecendo como nós somos diretamente devedores dessas duas nações africanas.
E generoso como poucos, Alberto da Costa e Silva compartilhou conosco um pouco das Áfricas que ele conheceu por experiência própria, mas também por histórias escritas e contadas por terceiros.
Um dos primeiros africanistas do Brasil
No Brasil, a escrita de Alberto da Costa e Silva o transformou em um dos primeiros africanistas do país. E mais importante do que o título, é o que ele representa. Ao contrário do que foi dito por séculos, ele escrevia (com todo o rigor científico) que sim, a África tinha histórias. E que elas eram tão plurais quanto imensas.
O tamanho dessas histórias não cabia naquele século 15 e no encontro com os portugueses. As Áfricas começavam muito antes disso. Na verdade, a África começava no exato momento em que nós, seres humanos, também começamos. E no belo livro A Enxada e a Lança, Alberto da Costa e Silva nos brindou com a diversidade que constituí o continente africano, descrevendo paisagens, reconhecendo a importância dos rios, analisando as muitas formas que as sociedades africanas se organizaram, nos explicando a importância da tradição oral, da impossibilidade em separar a experiência religiosa da vida mundana quando o sujeito da frase são homens e mulheres africanos.
Mas ele também era um Silva. Sabia do valor de conhecer as histórias da África, mas tinha plena certeza que, no Brasil, esse valor era dobrado. E sua atuação como historiador revelou as violências e crueldades que organizaram a escravidão brasileira, sem nunca perder de vista que o Brasil que conhecemos hoje só existe porque foi construído por africanos de diferentes origens, portadores de múltiplos saberes e culturas. Boa parte de seus livros são embarcações que fizeram o caminho contrário dos navios negreiros, restituindo aquilo que a escravidão e o projeto racista tentou retirar da África: suas histórias.
Pela sua gentileza e generosidade, quero crer que além de nos ensinar tanto, ele também teve uma boa vida.
Aqui, resta agradecer e reverenciar esse bom e sábio aliado.
Alberto da Costa e Silva morreu no dia 26 de novembro de 2023, aos 92 anos.