Da interpretação torta e da loucura e racismo evangélico, por Cleinton Gael

Racismo Evangélico

Era noite de domingo e eu tentava, pela enésima vez, dar uma oportunidade a mim mesmo de ouvir uma bela mensagem bíblica. Frustração total, como acontece já há uns 15 anos, com raríssimas exceções. É claro que não me iludo mais com os pregadores e com o mundo gospel, mas ainda insisto numa maratona que um dia ainda vai acabar com minha capacidade de viver longe da depressão gerada por um mundo evangélico adoecido.

A pregadora da noite, uma mulher tida como uma das mais respeitadas figuras evangélicas do Espírito Santo, e talvez do Brasil, assumia o púlpito, numa alegria que parecia ter força para contagiar a todos. E conseguiu, de fato, mas, para infelicidade deste que, inconformado, dava atenção a um arsenal de besteiras “teológicas” e a racismos e intolerâncias – que poderiam terminar numa delegacia de polícia, sem qualquer direito à fiança, visto que racismo é no Brasil um crime inafiançável – proferiu aquela que acaba de entrar no seleto grupo de mensagens que nunca deveriam ser pregadas.

Como afirmei em textos anteriores, pesquisas mostram que os brasileiros, em mais de 90%, acreditam que o Brasil é um país racista, mas menos de 10% se entendem como tais, visto que, ao fim e ao cabo, o racista, bem como o corrupto, é sempre o outro. O Brasil é racista, sim, mas são as pessoas, não eu! Eu sei que é, mas eu não faço parte disso! A noite de 13 de abril de 2014 respondeu a uma inquietação de longa data; o racista sou eu, com certeza, desde que você saiba contar a “piada certa”.

Numa infelicidade de dar pena – ou raiva – a pregadora começou a noite com o tradicional sermão de 3 pontos, onde se lê um texto, se sai dele para contar histórias que tentam fazer deus ser Deus e se volta ao texto, no final, apenas para tentar confirmar que foi uma “mensagem bíblica”, o que, como é sabido, está longe de ser, visto que a nada criteriosa mistura de Antigo com Novo Testamento e a errônea compreensão de que o “tudo posso naquele que me fortalece” significa que “eu posso TUDO” mostraram a fragilidade de nossas hermenêuticas insanas, mais afeitas ao mercado e à lógica neoliberal do que à sensata interpretação de que consigo suportar os sofrimentos da vida porque tenho fortaleza no Senhor Jesus.

Assim, para justificar o “poder de poder TUDO”, a mensageira da noite propôs que seria necessário um novo olhar sobre a realidade, visto que um olhar para as barreiras poderia nos fazer perder a dimensão da grandeza do Deus que supera a todos os impedimentos. Então, para justificar que é possível viver “vendo com os olhos de Deus”, a senhora que nos “ensinava a Bíblia” defendeu – exemplificando que a beleza é uma questão de olhar – que “a pessoa pode até ter cabelo ruim, mas deve se mancar e passar a máquina, sem titubeio”, pois “quem tem cabelo ruim, não tem outra saída, já que tentar alisar fará dela alguém que tem não um cabelo, mas um carpete na cabeça”. Para continuar o show de horrores, a pregadora disse, muitíssimo feliz, que sua filha é muito bonita, mas havia a preocupação de ela nascer com o “nariz de batata”. Para evitar que isso acontecesse, narrou que sua avó ficava a apertar o nariz da menina, desde muito pequena, o que ajudou a fazer “o milagre de ela ter o nariz fino e ser um linda adolescente que escapou de ter um nariz que ninguém merece”.

É claro que, se perguntada sobre um país racista, a pregadora da noite diria que é “veementemente contra o racismo, mas que entende muito bem que o país é racista”, assim como a acompanhariam na resposta praticamente todos os que ali estavam, já que riram a não poder mais, divertindo-se com um dos mais nojentos aspectos dessa sociedade que se diz “a-racista” e “tolerante com as diferenças”. Sim, eu encontrara os racistas; como no caso do Brasil em geral, eram praticamente todos. A pregadora da noite saiu ovacionada e continuará a ser convidada e considerada uma sumidade no meio evangélico brasileiro. Já eu, negro e pesquisador de relações raciais no Brasil, saí daquele ambiente com uma sensação de impotência infinda, uma vez que meu cabelo não é “bom”; meu cabelo, como diz a poeta capixaba Elisa Lucinda, não sobe favela para fazer caridade aos sábados.

liberdade, beleza e Graça…

 

 

 


Cleiton Gael

Graduado em Artes Cênicas, Teologia e Ciências Sociais, com mestrado em Sociologia e Direito pelo PPGSD-UFF e doutorando em Sociologia pelo IESP-UERJ. Pesquisador de Relações Raciais no Brasil, Sociologia da Religião e Teoria Sociológica.

Fonte: Blog do Claiton Gael

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