Por que mulheres, pessoas negras e outros grupos minorizados deveriam aprender a programar?

Programação é o meio que utilizamos para nos comunicar com um computador e enviar comandos para execução de tarefas. Uma das minhas definições preferidas diz que: “A program is to computer as a language is to humans”, ou seja “Um programa é para o computador aquilo que a linguagem é para o ser humano”.

Por Gabriela Pires, do Comum.vc 

Assim, podemos entender a programação como um sistema complexo de comunicação que por meio de diferentes idiomas, ou especificamente,  por meio das linguagens de programação, nos permite utilizar o computador para as mais variadas funções. Cada dispositivo se utiliza de uma linguagem de programação ou uma combinação delas para funcionar. Linguagens com regras próprias, que respeitam uma sintaxe e uma semântica, assim como quando nos comunicamos por nosso idioma, ou melhor ainda, quando nos comunicamos por inglês. E por quê inglês, exatamente? Por que a maioria das linguagens de programação tem como base a língua inglesa.

Por que aprender a programar?

Você pode pensar: mas por que eu, usuária doméstica de computador e Internet, preciso aprender a programar? Os motivos são diversos; primeiro é o fato da programação estar presente em quase todos os dispositivos eletrônicos atuais. Pode ser encontrada desde smartphones, computadores, passando por eletrodomésticos até carros “inteligentes”, em um grau de ascensão motivada principalmente pela Internet das Coisas. E você é usuária disso tudo ou pode se tornar usuária, futuramente. É talvez um caminho sem volta, por isso a alta demanda por profissionais de Tecnologia que vemos hoje só tende a aumentar. Dominar estas ferramentas é imprescindível e por isso, no futuro, saber programar pode ser tão essencial quanto ler e escrever.

Além disso, ela também pode ser usada para automatizar tarefas repetitivas da nossa rotina. Precisa regar as plantas? Alimentar o cachorro? Editar aquela planilha chata ou, quem sabe, organizar a sua coletânea de vinis? A amiga programação está aí para ajudar!

Podem até existir programas prontos que façam tudo isso para você, mas aprender a programar é ganhar maior liberdade. Talvez aquele programa tenha alguma funcionalidade que não se adequa bem ao que você precisa, então, por que não modificar o código ou escrever o seu próprio programa do zero? Programação é liberdade de personalização e liberdade para escrever programas ou fazer melhorias que atinjam a sociedade de maneira positiva.

Ganham-se ainda benefícios adicionais como o desenvolvimento do pensamento lógico, o gerenciamento de tempo, organização – habilidade mais do que essencial a programadoras e desenvolvedoras –  e colaboração. Aprendemos novas maneiras de pensar, de aprimorar nossa percepção e projetá-la em outras atividades da vida. A programação nos ensina a dissecar problemas e considerá-los do micro ao macro.

O problema

Um pesquisa da iniciativa Girls Who Code – que promove workshops de programação para meninas nos EUA – estima que desde os anos 80 houve uma diminuição drástica de mulheres nas carreiras de tecnologia, programação e desenvolvimento. O que em 1984 figurava em um total de 37%, hoje se encontra por volta de 18% no país . Em 2020 quando estima-se que 1.8 milhões de postos de trabalho sejam abertos, apenas 3% serão ocupados por mulheres. Em outra conta, podemos pensar o quanto destas mulheres serão negras ou não brancas, trans e travestis, com deficiências, e dos demais grupos minorizados

Reshma Saujani, uma das fundadoras da iniciativa, acredita que a maior parte deste gap na área é reflexo da educação dada às meninas. Ela  argumenta que somos ensinadas a sermos sempre perfeitas e a evitar erros a todo custo. Por outro lado, meninos são ensinados a serem fortes e corajosos e a assumir riscos como uma maneira de aventurar-se. O erro e a imperfeição são partes fundamentais do aprendizado e da prática da programação, e estarão presentes em qualquer estágio do conhecimento. Por isso, mulheres que são ensinadas a evitarem o erro, evitam também áreas propensas ao erro contínuo e ao possível julgamento.

É possível considerar também que outra das causas do abandono pelas mulheres se deu pela invisibilização de suas contribuições ao longo da história – indo do primeiro algoritmo escrito por Ada Lovelace, até as programadoras do ENIAC nos anos 40, e os feitos de Grace Hopper e  programadoras da NASA nos anos 50 e 60 – e pela valorização das áreas de tecnologia como atividade intelectual de grande complexidade com crédito atribuído aos homens.

Construir oportunidades e ambientes saudáveis para que as mulheres e demais grupos minorizados se apropriem dessas ferramentas é essencial para equilibrar estes números e gerar diversidade.

Homens brancos, cisgêneros e heterossexuais ainda são os maiores detentores de poder nas Ciências Exatas, principalmente no ensino superior. E um dos principais motivos da evasão de mulheres em cursos como Ciências da Computação, Engenharias e afins é o julgamento e a desvalorização por parte de estudantes homens, sem deixar de citar o machismo, sexismo, assédio e misoginia a que as mulheres estão diariamente expostas.

E, apesar da programação se tratar de uma ferramenta baseada em lógica e matemática, acreditar que ela não é diretamente influenciada pela subjetividade é um grande equívoco. Quem escreve o algoritmo de um programa, na maior parte das vezes, ainda são pessoas. O computador apenas os interpreta. E os algoritmos são diretamente influenciados pela desigualdade, pela história de vida do ser humano e seus preconceitos. Um exemplo pode ser visto no caso do software de reconhecimento facial programado pela Google que identificou dois homens negros como gorilas. O evidente racismo diz muito mais das pessoas envolvidas que não utilizaram parâmetros adequados na programação do software, do que no software em si que interpreta e trabalha com informações geradas pelo código escrito.

Mas afinal, por que eu acho que os grupos minorizados deveriam aprender a programar?

Você que é mãe, já pensou em programar um aplicativo para mapear estabelecimentos que são contra amamentação em público?

Você que é uma pessoa negra, já pensou em desenvolver um site alimentado por um banco de dados de advogados de prontidão para casos de racismo?

Você que é pessoa trans ou travesti, já pensou em programar um software de edição de texto que analisa e corrige transfobia na escrita?

Dominar a tecnologia é conquistar poder. Quanto maior a diversidade dentro das áreas ligadas a programação menores as consequências sociais negativas relacionadas a essas atividades. Quanto mais mulheres, menos piadas machistas em ambiente de trabalho, menos misoginia em jogos online. Quanto mais pessoas negras, mais efetivo será o combate ao racismo. Quanto mais pessoas trans, travestis, lésbicas, bissexuais, pessoas com deficiências, enfim! Mais voz e condições de combater as opressões a que estamos sujeitas.

Tenha controle da programação e do desenvolvimento. Não tenha medo de “códigos estranhos”. Faça softwares, sites e aplicativos seguros e que atendam necessidades reais e de maneira mais eficaz. Alimente sua alma hacker! Compartilhe seu código com os movimentos sociais e fortaleça, além da comunidade de tecnologia, a comunidade de grupos minorizados na tecnologia.

Gabriela Pires é feminista negra, designer gráfico, escritora por hobby e por necessidade, além de entusiasta de “quase qualquer coisa na vida”. A descoberta da vez é desenvolvimento web, programação e tecnologia, áreas que  já conseguiram uma passagem só de ida para o fundo do seu coração <3

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