Durante muito tempo a violência doméstica no Brasil foi tratada como problema privado, familiar, e não uma questão de Estado. O sofrimento de milhares de brasileiras permaneceu entre quatro paredes, banalizado e naturalizado aos olhos do Estado, da sociedade e da Justiça.
Por SILVIA CHAKIAN, da Marie Claire
Após anos de lutas sociais para mudar esse quadro, em 2001, a cearense Maria da Penha Fernandes acionou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Pediu à corte o reconhecimento da negligência na apuração de seu caso: passados mais de 15 anos das duas tentativas de homicídio praticadas por seu ex-marido, que a deixaram paraplégica, seu processo se arrastava sem decisão definitiva.
O Estado foi responsabilizado pela inércia e recebeu a recomendação de criar políticas voltadas à erradicação da violência contra as mulheres no país. Foi assim que o projeto de lei prevendo mecanismos de combate e prevenção à violência doméstica, que contou com o apoio de um consórcio de ONGs, juristas feministas e integrantes dos movimentos de mulheres, deu origem à Lei Maria da Penha.
Ela parte do reconhecimento da posição de dominação histórica que ainda sofrem as mulheres nas relações domésticas, lembrando que a violência que as atinge é bem diferente daquela praticada contra homens. No caso deles, ela ocorre no espaço público, de maneira ocasional, praticada por desconhecidos. É decorrente do tráfico, do trânsito ou da briga de bar, por exemplo. De outro lado, a praticada contra as mulheres costuma acontecer no lar, de maneira quase habitual, por parte de parceiro ou de alguém com quem a vítima tenha parentesco/afinidade.
A Lei Maria da Penha representou o rompimento do paradigma de tolerância à violência doméstica que sempre prevaleceu no país e é um dos principais marcos na conquista de nossos direitos. Consagrada nacional e internacionalmente, é conhecida por 99% da população e foi identificada pela ONU como uma das três legislações mais avançadas do mundo sobre o tema. Entre os principais avanços: as medidas protetivas de urgência e as políticas voltadas à prevenção da violência. Nem todas implementadas, infelizmente, como é o caso daquelas destinadas à educação e à reflexão do agressor, imprescindíveis para a desconstrução da masculinidade que, muitas vezes, foi concebida na infância, para ser discriminatória em relação à mulher.
Fazendo um balanço dos obstáculos que ainda enfrentamos nesses 13 anos de legislação, um aspecto chama mais atenção: a resistência de engajamento efetivo dos homens, como se a questão da violência contra a mulher estivesse restrita a uma preocupação feminina. Se a violência de gênero é um fenômeno social, que impacta milhares de meninas e mulheres no nosso país, o qual apresenta a vergonhosa estatística de um estupro a cada 11 minutos e a 5ª colocação entre as nações com o maior número de mortes violentas de mulheres, não há mais como conceber qualquer tipo de alienação masculina. Como se diz popularmente, daquele que é parte do problema exige-se que também seja parte da solução.
Nesse aniversário da Lei Maria da Penha, nada mais urgente que um chamado aos homens para identificarem sua parcela de contribuição na produção e reprodução das relações de poder e nas definições de masculinidades que se refletem nos nossos índices de desigualdade e violência de gênero, conscientizando-os de sua responsabilidade nessa causa, que não é apenas de meninas e mulheres, mas de toda a humanidade.
Silvia Chakian é promotora de justiça, mestre em Direito Penal e autora do livro A Construção dos Direitos das Mulheres (@silvinhachakian)