“Eu não sou racista. Mas, se a sociedade é, o que posso fazer?”: bem-vindo ao mundo do racismo situacional

David Campayou, o torcedor espanhol que arremessou uma banana em direção a Daniel Alves, se defendeu. É mentira que seja racista. Para ele, “tanto faz se uma pessoa é negra, branca ou chinesa”, mas “o mundo é mais complicado”.

Kiko Nogueira no DCM

Donald Sterling, o dono do time LA Clippers flagrado numa conversa em que mandava a namorada não se meter com negros, negou o racismo. Ele “não se importa se alguém é branco, preto, amarelo ou púrpura”. Mas “é assim. Nós vivemos numa sociedade, numa cultura. Eu não posso mudar a cultura. É grande demais”.

O que eles têm em comum?

Kareem Abdul-Jabbar, num bom artigo para a Time, fala do “racismo situacional”, algo que se aplica a ambos os casos: como na ética situacional, o racismo, hoje, não tem mais um só modelo ou padrão e sim um contexto que determina a escolha moral correta. É um princípio flexível, em que nós agimos levando em conta a maneira como a ideia de raça é encarada atualmente, e não como gostaríamos que fosse.

Ele ilustra com um clichê: você encontra na rua uma grupo de negros tatuados. Se você mudar de calçada, está sendo racista ou realista?

Jabbar é um ex-jogador de basquete americano. Atuou durante 20 anos na NBA e ganhou tudo. Muitos o consideram o maior de todos os tempos. Depois que se aposentou, teve uma breve carreira como técnico. Virou conferencista, escreveu o roteiro de um documentário e ganhou um cargo honorífico de embaixador da educação do governo.

Sua formulação se aplica ao Brasil e ao mito da democracia racial que se acreditava haver aqui. Talvez a pior forma de discriminação, acredita ele, seja declarar que ela não existe ou que é culpa do sistema. Ecoando Sterling, Pelé afirmou que “isso tem em todos os setores da sociedade há muito tempo”. Em entrevista à Trip, Anderson Silva declarou que ”tem outras coisas mais importantes em que a gente tem que focar e gastar mais energia”.

Para Kareem Abdul-Jabbar, todo o mundo tem o racismo no coração: “Sentimo-nos mais confortáveis em torno de pessoas com aparência e experiências parecidas. Mas, como seres humanos inteligentes, educados e civilizados, lutamos contra reações automáticas porque muitas vezes elas estão erradas e, finalmente, porque são danosas”.

“A boa notícia será quando o racismo acabar, não quando as pessoas afirmarem que ele não existe porque, pessoalmente, não o notam”, escreve. “É por isso que o jeito mais efetivo de combatê-lo em face dessa atenção seletiva e do racismo situacional é expor todos os casos que encontrarmos”.

Sobre o Autor

Diretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

Fonte: DCM

 

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