A ancestralidade de Dona Ivone Lara

Matriarca do samba vive eternamente nas vozes que cantam sua história

Por Djamila Ribeiro, da Folha de São Paulo

Imagem: Linoca Souza/Folhapress

Estreou no fim de agosto o musical “Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro”, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo. No espetáculo, a história da sambista é contada em momentos que marcaram sua vida.

A personagem é vivida em diferentes idades pelas atrizes Di Ribeiro, Heloísa Jorge, Belize Pombal e Fernanda Jacob, que contracenam com atores como Felipe Adetokunbo, jovem cantor de voz belíssima, sobre o qual já escrevi nesta Folha.

Grande matriarca do samba, Dona Ivone Lara deixou um legado de samba e conduta. Mulher de candomblé, filha de Oxum, veio a se tornar uma ancestral no último ano.

Como ancestral, Dona Ivone Lara vive eternamente nas belas vozes que têm cantado sua história e suas músicas, como a de Fabiana Cozza, que de maneira tão bela a representou. E enquanto houver quem a cante, celebre e busque honrar seus passos, suas lições se eternizam.

Lembro de ouvi-la e me identificar com a forma matreira como cantava que alguém havia avisado a ela para pisar devagarinho. Depois, já domina o samba perguntando “estou aqui, o que é que há?”.

Via os vídeos e me encantava com a forma como chegava em festa no palco, reverenciada pelos sambistas mais novos, que viam nela uma força da natureza. Dona Ivone Lara transbordava senioridade.

Vale dizer que nas religiões de matriz africana, a velhice é vista de uma forma diferente da habitual, no sentido de que há o reconhecimento dos passos ancestrais nas mais velhas.

Em “A Bênção aos Mais Velhos”, o babalorixá e doutor em antropologia pela PUC Rodney William Eugênio explica: “No candomblé, tudo aquilo que é velho, antigo — inclusive as pessoas—, ganha traços de ancestralidade, revestindo-se de um caráter sagrado. É como se os mais velhos fossem a ligação com os grandes personagens da religião que já se foram, como se fossem seus representantes legítimos”. Quem olhava para Dona Ivone Lara, via uma “grande mãe”, com toda a autoridade que isso traz.

Durante a vida de uma pessoa negra são diversas as violências experimentadas, desde as piadas com conteúdo racista na infância até condições materiais precárias de subsistência, resultando numa sobrevivência muito mais difícil pelos mais variados olhares.

Dados evidenciam inaceitáveis índices de mortalidade de jovens negros, encarceramento, evasão escolar.

As mulheres negras enfrentam as piores condições econômicas, são as maiores vítimas de violência doméstica, entre tantas outras faces violentas dos sistemas de opressão.

Por isso, um olhar a uma negra mais velha é carregado de reverência e admiração, pois se imagina o quanto aquela pessoa passou para chegar até ali com aquela coroa que ilumina toda a sala, com a altivez e consciência limpa das grandes rainhas, que muito lutaram por seu povo.

“Ter resistido ao sofrimento, às agruras, à doença e à própria morte, que nos procura todos os dias, faz do velho um símbolo de força, comprovando que suas palavras e suas ações têm fundamento e verdade.

Assim, quando este mais velho fala, todos se calam e reconhecem seu poder de transmitir e produzir conhecimento”, afirma Eugênio.

Diferentemente da norma ocidental, ser velho numa perspectiva de matriz africana não é “ruim”. Como diz Joice Berth, feminista negra, já é tempo de admitirmos que a cultura patriarcal inverte valores e impõe um desgosto diante da maturidade feminina. É a lógica que torna raro o caso de uma mulher mais velha em relacionamento com um homem mais novo —quando o contrário não é verdadeiro—, que pouco ou nada relega a uma mulher mais velha das qualidades do belo.

“É uma espécie de silenciamento negar o belo e o sensual imponente do envelhecer feminino. Esse silenciamento é imposto pelo temor das masculinidades frágeis que não sustentam a potência serena e infalível que o tempo nos confere”, sustenta Berth.

Em oposição a esse olhar, reverencio as tradições africanas de senioridade e me ponho aberta a sua sabedoria, acolhimento e ensinamentos.

Infelizmente não tive a oportunidade de conhecer Dona Ivone Lara pessoalmente, mas quando sua voz é ecoada, sua história é contada e sua realeza é brindada, sua ancestralidade toma forma, tornando-a imortal. Que sua história seja sempre cantada e que nunca deixemos de reverenciar aqueles e aquelas que bateram muito o chão sobre o qual andamos hoje.

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