“Enquanto me beijava, ele tentava me atirar pela janela.”

A violência doméstica, crime silencioso e invisível, por muito pouco não leva a vida de H.

Maria Carolina Trevisan e 

H.*, 32 anos, é pernambucana mas vive na capital paulista desde os 11. Auxiliar de limpeza, ela tem 4 filhos e 5 irmãos. Todos moram em São Paulo, na periferia da zona norte. Foi casada com A. por 8 anos, com quem teve os 2 filhos mais novos, um menino e uma menina, hoje com 5 e 6 anos. O casal de filhos mais velhos têm 13 e 14 anos, frutos de seu primeiro casamento. As quatro crianças testemunharam o que poderia ter sido a morte da mãe.

Há pouco mais de um ano, H. e A. se separaram. Aparentemente calmo, o ex-marido era um pai presente, via os filhos dia sim, dia não. Lavava as roupas da mulher e das crianças, já que, na partilha dos bens, ficara com a máquina de lavar. H. é uma mulher franzina, cabelos ralos e voz baixa e fina. As mãos pequenas e enrugadas de labuta, não levam anéis, nem esmalte e se apertam na medida em que conta sobre o trecho mais duro de sua história. Sua vaidade se expressa pelos brincos grandes nas orelhas e uma pequena pedra brilhante no lado direito do nariz.

A. estava certo de que ela tinha um novo amor. Como a grande maioria dos homens que comete esse tipo de crime, estava disposto a não deixar que ela fosse de mais ninguém. De repente, sacou uma faca e desferiu 20 golpes em seu corpo.

Dois meses se passaram desde a separação. “Ele parecia muito tranquilo com a decisão sobre o fim do casamento”, contou H., no Fórum da Barra Funda, em São Paulo, após o lançamento da campanha “Senado, inclua a Lei do Feminicídio no Código Penal”, nesta quinta-feira, 7/8.

Na madrugada de 20 de julho, H. não foi trabalhar. Estava de licença médica quando o ex-marido chegou, por volta das 5 da manhã. Ela se sentou no chão da lavanderia do terceiro andar do sobrado em que vivia com os filhos e começaram a conversar enquanto ela fumava um cigarro. Uma discussão se iniciou, A. estava certo de que ela tinha um novo amor. Como a grande maioria dos homens que comete esse tipo de crime, estava disposto a não deixar que ela fosse de mais ninguém. De repente, sacou uma faca e desferiu 20 golpes em seu corpo. Os piores foram as facadas no rosto e na cabeça, agressão também comum nos casos de violência doméstica, propositadamente para desfigurar a mulher. Ferida, gritou. A filha mais velha, na época com 12 anos, escutou e alertou a vizinhança, que correu em socorro. Dali, o ex-marido tentou atirá-la pela janela do terceiro piso. Ao mesmo tempo em que H. se agarrava à jaqueta de A. para se salvar, muito ferida, ele a beijava. Foi o tempo necessário para que um dos vizinhos imobilizasse o ex-marido.

“Tenho vontade de perguntar: por que você fez isso? Por que você não conversou comigo? Que amor foi esse? Como é que me amava tanto e foi fazer isso?”

Na presença dos dois filhos pequenos, e com a ajuda do menino de 4 anos, que lhe segurava a bochecha cortada, H. foi descendo pelas escadas sentada até que pudesse ser resgatada. Os vizinhos soltaram A., que se escondeu na terreno ao lado e não ofereceu resistência ao ser preso. Ele aguarda julgamento em um Centro de Detenção Provisória na zona oeste de São Paulo. Nunca mais se viram. “Tenho vontade de perguntar: por que você fez isso? Por que você não conversou comigo? Que amor foi esse? Como é que me amava tanto e foi fazer isso?”, contou, com os olhos marejados e a tristeza latente de quem tenta, ainda, compreender a atitude do ex-companheiro. Ainda tem pesadelos com a ameaça de ser jogada pela janela. E não encontra lugar dentro de si para receber outro afeto.

Foram 13 dias de internação e 10 meses de recuperação física, sem poder trabalhar. A face esquerda ficou paralisada para sempre. H. esconde esse capítulo de sua vida. Mudou-se do bairro em que vivia para o extremo oposto da cidade. Tem medo de não conseguir mais emprego, de ser discriminada, de não saber lidar com os acontecimentos e com as perguntas dos filhos. Mais que isso, se sente envergonhada de ter sido vítima de violência doméstica. Os irmãos e a mãe ofereceram apoio e sabem de tudo o que aconteceu. Mas prefere que seu pai nunca se inteire. Teme que ele queira acabar com a vida de A.“O pai cria a gente achando que a gente vai casar e vai ser feliz. Eu também achei que iria me casar e seria feliz. Nunca imaginei que ele faria isso”, diz H. Como A. é o pai de seus filhos, ela ainda tenta uma reaproximação. Busca, na Justiça, o direito de levar as crianças para vê-lo no próximo dia dos pais, neste domingo, 10/8.

*Usamos iniciais para preservar a identidade da entrevistada.

Foto: Marlene Bergamo

Fonte: Ponte.org

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