Chamar de “bicha”, em nossa sociedade machista, é discriminatório, sim

Caio Rocha, presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), afirmou que não vê discriminação em torcedores chamarem de “bicha” jogadores que são heterossexuais. De acordo com o Painel FC, da Folha de S. Paulo, esses gritos seriam, para ele, uma “ofensa” e não uma “discriminação” – passível de punição mais severa. Ele diz que “o ato discriminatório tem que ser direcionado a pessoas com características diferentes às do autor da ofensa”.

Foto: Flávio Florido

Leonardo Sakamoto

Essa discussão é repetida neste blog, mas tendo em vista a declaração coletada pelos colegas, acho que vale resgatar o debate abaixo, já publicado aqui.

Sabemos que dizer que alguém é “gay” ou “lésbica” em uma sociedade heteronormativa e machista como a nossa pode carregar uma montanha de intenções negativas e discriminatórias.

O significado não passa apenas pela orientação sexual, mas todo um pacote de comportamentos fora do padrão que foram equivocadamente imputados a esses grupos ao longo do tempo.

O que não é aleatório, mas sim uma forma de separar o certo e o errado, o quem manda e quem obedece, ditados pelo grupo hegemônico. Como as piadas, que existem em profusão para rir de gays, travestis, negros, mulheres, terreiros, pobres, imigrantes e raramente caçoam de pessoas ricas ou famílias de comerciais de margarina na TV.

Mas imagine se isso não acontecesse, se a orientação sexual ou identidade de gênero de uma pessoa não fizesse diferença alguma porque, na prática, não faz mesmo. Se assim fosse, caso alguém dissesse que um jogador de futebol é gay, ninguém se abalaria.

O ator George Clooney que, vira e mexe, tem a sexualidade tornada motivo de pauta pela imprensa sensacionalista, afirmou que não desmentia os boatos de que seria gay porque isso seria uma atitude grosseira com seus amigos gays e com os homossexuais em geral. Pois ser gay não é algo ruim ou vergonhoso e, para ele, não faz diferença se pessoas ficam em dúvida quanto a sua orientação sexual.

É claro que as torcidas de futebol, quando entoam coros chamando determinados jogadores de “bicha”, que é um termo depreciativo, têm o intuito de transformar uma orientação sexual em xingamento. Reforçam, dessa forma, que ser “bicha” é ser ruim, ser frouxo, medroso, incapaz e tantos outros elementos acrescidos ao significado falsamente aos gays ao longo do tempo.

Nesse caso, o uso da expressão não está atacando apenas o jogador (independentemente da orientação sexual do esportista), mas toda a coletividade, pois reforça preconceitos e questiona a dignidade de determinado grupo.

Fazendo um paralelo simples: um estádio inteiro gritando que um jogador negro é “negro” (atenção: não estou nem falando de praticar a ignomínia de xingar de “macaco”) não é simples observação da realidade, mas quer passar um recado cuja intenção é péssima.

Assume uma conotação diferente do significa original da palavra, com um significado bem distante de gritar que um jogador branco é “branco”. Pois sabemos bem que a sociedade dá pesos diferentes a negros e brancos e que o racismo ainda grassa por aqui, apesar de nossa cegueira coletiva.

Nesse sentido, creio que gritar “bicha” em um estádio assume sim um sentido não apenas ofensivo, mas também discriminatório e deveria ser analisado com rigor pela Justiça, aplicando punições didáticas para o clube da torcida em questão.

Gostaria muito de estar vivo para chegar ao dia em que tudo isso seja tão normal que passe batido. Talvez, nesse mundo futuro, ninguém se sinta ofendido ou ofenda por algo que deveria suscitar o mesmo debate que o tom do branco do olho.

 

Fonte: Blog do Sakamoto

+ sobre o tema

A burguesia sem charme, sem finesse, machista e despudorada

“Eu não vou me deixar atemorizar por xingamentos que...

Cida Bento é uma das 50 profissionais mais influentes do mundo

Mulher negra brasileira está entre os 50 profissionais de...

Só Deus por Sueli Carneiro

Fui assaltada em 31 de julho último. Um assalto...

para lembrar

Mulheres contra o feminismo – Lola Aronovich

Não sei se está exatamente na moda, mas nos...

Mensagem do presidente da Fundação Palmares ao Dia da Mulher

Hoje, 8 de março, comemoramos o Dia Internacional da...

Casos de feminicídio e violência doméstica contra mulher crescem 40% na Justiça

O número de novos casos de feminicídio e violência...

Pernambucana conquista licença por filha gerada pela companheira

Jornalista recebeu benefício integral, após acordo com TRT e...
spot_imgspot_img

Mulheres recebem 19,4% a menos que os homens, diz relatório do MTE

Dados do 1º Relatório Nacional de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios mostram que as trabalhadoras mulheres ganham 19,4% a menos que os trabalhadores homens no...

Órfãos do feminicídio terão atendimento prioritário na emissão do RG

A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) e a Secretaria de Estado da Mulher do Distrito Federal (SMDF) assinaram uma portaria conjunta que estabelece...

Universidade é condenada por não alterar nome de aluna trans

A utilização do nome antigo de uma mulher trans fere diretamente seus direitos de personalidade, já que nega a maneira como ela se identifica,...
-+=