A representação do outro pelo olhar da incompreensão

Por: Marcia Rangel Candido

Dentro da polêmica que vem se delineando sobre as propagandas do novo programa da Rede Globo, “Sexo e as Negas”, o elemento que agora parece sobressair reside no desprezo pela opinião de parte da audiência, que ao olhar do autor, Miguel Falabella, deveria estar se sentindo bem representada. Na multiplicidade de espaços de poder dominados por homens brancos, as lutas por representação da diversidade são constantemente marginalizadas. Há dificuldade em entender que restringir a representação a estereótipos nada tem de inclusivo. Ao contrário, reforçar papéis sociais específicos se relaciona, no caso de negros e negras, diretamente ao racismo. A resposta irônica que as manifestações contra a exibição do programa receberam mostra como ainda é difícil para nós, mulheres, nos fazermos ouvir dentro de uma sociedade sexista, que ignora o quanto a mercantilização dos nossos corpos incide sobre as diversas espécies de violência cotidiana que temos que enfrentar.

A representação no meio audiovisual é importante por influenciar a formação das nossas percepções sobre o mundo e sobre nós mesmas. A dinâmica social representada no cinema, nasnovelas, séries e afins vai além do seu caráter de entretenimento. A influência que esses meios exercem como produtores de realidades possíveis e transformadores de valores, por vezes seguindo as mudanças transcorridas na própria sociedade, é substancial. Segundo dados do IBGE (2012), os negros representam 52,9% da população. Essa diversidade contrasta diretamente com a participação ínfima desse grupo nos meios audiovisuais.

Em pesquisa desenvolvida sobre os filmes de maior bilheteria no Brasil, entre 2002-2012, o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, do IESP-UERJ, mostrou que entre as roteiristas e as diretoras, já constituídas como minoria, nenhuma delas era negra. No campo da interpretação as mulheres negras representavam apenas 4% dos papéis de maior destaque. Além disso, a construção da representação é majoritariamente guiada por olhares masculinos, de cor branca, que representam 68% dos roteiristas e 84% dos diretores.

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Essa realidade não passa despercebida, o movimento negro tem uma história de luta que reivindica a possibilidade de contar a sua história, a partir do seu próprio olhar. O cineasta Joel Zito Araújo, um dos porta vozes atuais dessa demanda, evidencia como as novelas brasileiras valorizam uma estética da branquitude, em que a beleza cultuada é a que possui traços europeus.

Em um cenário com baixíssima representação da diversidade e onde a beleza da mulher negra é sempre invisibilizada ou reduzida a estereótipos da “mulata boazuda”, um seriado que tem como protagonistas mulheres negras teria tudo para ser um marco. O problema é que a construção da representação delas está sempre associada à sua sexualidade aflorada e ao culto ao seu corpo, padrão que parece ser mais uma vez enfatizado.

Há muito mais diversidade nas formas que se retratam as mulheres brancas, em diferentes classes sociais, sendo patroas, exercendo diversos tipos de profissão, etc. O mundo da mulher negra, ao contrário, é reduzido a trabalhos de menor prestígio social, que a consagram dentro de esferas específicas. É como se a mídia ajudasse a propagar a ideia de que o lugar da mulher branca é onde ela quiser, enquanto o da mulher negra é restrito. Se por um lado, Falabella reconhece que as oportunidades concedidas aos negros são reduzidas, por outro, ele ignora que concebê-las dentro de estereótipos recorrentes pode vir a prestar um desserviço.

A representação centrada no sexo pelo sexo não pode ser a única via de interpretação sobre uma mulher. Se a luta por liberdade sexual tem seu valor dentro do feminismo, a via que reclama a não objetificação do nosso corpo e que se indigna contra a violência à mulher deve ser igualmente valorizada. Reafirmar padrões discriminatórios e descartar a mulher como não precursora de opiniões políticas, como fez a resposta descrente do autor do seriado, só enfatiza que a luta não deve parar. Não adianta desmerecer nossa voz, não somos passivas, continuaremos em Marcha, até que todas sejamos livres!

Marcia Rangel Candido é Militante do Coletivo Rosa dos Ventos e da Marcha Mundial das Mulheres e Mestranda em Ciência Política no IESP-UERJ.

Fonte: Marcha Mulheres

 

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