Sobre visões e tons

Polêmica do vestido remete a Fernando Sabino. Tabuleiro de damas pode ser de outra cor, com quadrados pretos e brancos

Por Flávia Oliveira, do O Globo 

Foto: Marta Azevedo

Foi Fernando Sabino em “Martini seco” (1987) quem propôs a reflexão. “Qual a cor do tabuleiro de damas?”, indagou o escrivão, um dos personagens, após vencer o amigo comissário de polícia numa partida. Seria branco com quadrados pretos ou preto com quadrados brancos? O comissário tentou as duas opções e errou a resposta. Ao fim, o escrivão sentenciou: “É de outra cor, com quadrados pretos e brancos”. A lembrança do episódio literário, que acabou dando nome à autobiografia (“O tabuleiro de damas”, 1999) do escritor mineiro morto há dez anos, emergiu da polêmica da semana nas redes sociais — a essa altura, já enterrada. De que cor seria o vestido da escocesa: branco e dourado ou preto e azul? O tolo questionamento se presta a explicar os dias de hoje, da vida em plebiscito permanente.

Por 24 horas, o mundo virtual se ocupou do enigma. A imagem do vestido foi alvo de dezenas de milhões de visualizações. Jornalistas se ocuparam da pauta. Oftalmologistas, neurocientistas e psicólogos foram convocados a explicar o Fla-Flu da ocasião. Os tensos perderam o sono. Os indiferentes foram dormir. Os debochados fizeram piada. Os ocupados esculhambaram o falso drama. Os radicais desqualificaram a opinião contrária. Sinal dos tempos.

E assim o dilema do vestido virou metáfora dessa época repleta de certezas fugazes, avessa à tolerância. Uma cor é uma cor. E pronto. Sentença emitida, hora da polêmica seguinte. Importa pouco se 10%, um quarto ou dois terços enxergam a peça (ou a vida) em outros tons.

Fernando Sabino, certa vez, explicou assim o diálogo sobre o tabuleiro de damas: “Quis sugerir que, por baixo da realidade que se apresenta aos nossos olhos, existe outra”. Do lado da ciência, o médico Luis Fernando Correia ensinou que a visão humana não é objetiva como parece: “Há mais interpretação que certeza. Cada cérebro interpreta as cores de um jeito próprio. E tudo bem”.

Na ausência dessa compreensão, reside a intolerância despudorada, de cores fortes e sem filtro, das redes sociais, que tanto mal faz ao debate democrático. Facebook e Twitter são torcidas organizadas de times rivais. Não basta torcer pelo próprio clube; é preciso humilhar, destruir os fãs adversários. Em segundo plano fica o esporte, paixão nacional a caminho da vala.

Na política, idem. O mundo virtual se divide entre os que enxergam o Brasil como irremediável fracasso ou sucesso em gestação. É tudo branco ou preto. Não há espaço nem para 50 tons de cinza, para usar a referência cinematográfica da vez, nem para a outra cor de Sabino.

E na agenda dos direitos civis, há quem sobreponha classificação de gênero ao afeto nas relações familiares. Daí o presidente da Câmara dos Deputados desarquivar uma proposta de legislação que limita a homem, mulher e descendentes a definição de família. É mais que diferença de visão, é falta dela.

Na loja virtual da varejista britânica, as vendas do vestido preto e azul quase quadruplicaram com o dilema das cores. A empresa, agora, estuda lançar o modelo branco e dourado. Fica aqui a sugestão que a peça venha também em outra cor, coberta de branco, dourado, preto e azul. Salve o tabuleiro de Sabino!

 

 

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