Especialistas discutem racismo e preconceito na sociedade brasileira

“Nós nunca fomos escravos, fomos escravizados. Também nunca fomos imigrantes, fomos trazidos à força para cá, e muitos morreram na travessia. Os resquícios da escravidão continuam até hoje, na figura da menina apedrejada no Rio de Janeiro, nos terreiros incendiados em Goiás por intolerância religiosa”.  A afirmação do advogado Sinvaldo Firmo, presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra da OAB/SP, marcou a abertura do Fórum Quando o Preconceito tem Cor – Reflexões sobre o Racismo. O evento discutiu as diversas formas de racismo na sociedade, entre os dias 29 e 30 de outubro, no Centro de Convenções da Unicamp.

Por Gabrielle Albiero, do Unicamp

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o racismo no Brasil é “estrutural e institucionalizado” e “permeia todas as áreas da vida”. O documento de 2013 afirma que, no entanto, tem sido difícil para os afro-brasileiros trazer a discussão para a agenda pública, pois há o “mito da democracia racial”. Os casos de vítimas de discriminação racial não resultam em condenações pois há dificuldades no reconhecimento da existência do racismo, afirmou a advogada Maria Sylvia de Oliveira, do Geledés – Instituto da Mulher Negra. Um levantamento do Laeser (Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) apontou que 70% das 148 ações judiciais de crimes de racismo e injúria racial no Brasil foram vencidos pelos réus, entre 2007 e 2008.

A origem do racismo estrutural e institucional está na forma como se deu a transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado no Brasil, que se baseou na marginalização do ex-escravizado e de seus descendentes, afirmou Ramatis Jacino, doutor em História pela Universidade de São Paulo e professor da rede pública estadual. Ao longo da história, as leis determinaram, implícita ou explicitamente, a exclusão do negro no trabalho e na educação. Ele citou o exemplo do decreto nº 10.331, de 17 de fevereiro de 1854, que estabelecia que, nas escolas públicas do país, não seriam admitidos escravos, e a possibilidade de instrução para adultos negros dependia da disponibilidade de professores.

Reprodução de modelos
O ambiente acadêmico nacional construiu uma solidez e uma unidade a partir de um sistema eurocêntrico, baseado na transferência do modelo de ciência europeia para o Brasil, logo, é inteiramente branco. Essa característica foi seguidamente reproduzida até ter reflexos em professores e alunos. Para o antropólogo José Jorge de Carvalho, professor da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia e Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, o tema do racismo é complexo e é necessário se evitar soluções simplistas.

Carvalho afirma que uma saída fácil é se pensar que não há especificidade para o racismo acadêmico, já que a sociedade é racista; mas ela é racista também porque a universidade é racista, já que prepara as lideranças e as reproduz. Segundo o antropólogo, o sistema de cotas oferece uma ruptura a esse padrão, que traz à tona a memória do racismo, porque foi formulado como política antirracista.

“As universidades públicas têm se calado diante de jovens que estão tirando as próprias vidas porque as instituições não dão conta da presença desse jovem nesse lugar, elas não são para ele, e se movimentam para tirá-lo desse espaço”, apontou a professora Rosana Batista, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Segundo ela, é responsabilidade das secretarias municipais da educação abordar uma pedagogia antirracista desde a educação infantil. As instituições de ensino devem detectar e debater com medidas socioeducativas casos de racismo e discriminação racial nas dependências escolares, além disso, introduzir e discutir nos planejamentos temas relacionados ao DCNERER (Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana).

“O conceito de cidadania se funda em direitos. Entretanto, se um indivíduo tem um direito que o outro não tem, ele tem um privilégio, e outro, um prejuízo”, observou Maria Aparecida Moysés, professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e uma das organizadoras do evento. A partir de tal privilégio, cria-se uma rede de proteção, “uma bolha”, e tudo que está fora do padrão cristão, masculino, branco e heterossexual é considerado “desumano”, defendeu Roseli de Oliveira, mestre em Ciências Sociais e especialista em Saúde Pública.

A luta política deve reverter o imaginário do local social do negro; para isso, é necessário o seu fortalecimento identitário, observou Oliveira. “São necessárias políticas específicas para pôr em xeque esse modelo civilizatório imposto. O Brasil ainda resiste, nega a opressão racial, e, ao negar, cria mais desigualdade, cria dois Brasis.”

O Fórum Quando o Preconceito tem Cor – Reflexões sobre o Racismo é organizado pelo Despatologiza – Movimento pela Despatologização da Vida, e pelo [re]pense, novo grupo de estudos do Fórum Pensamento Estratégico (Penses) que se dedica a organizar eventos e produzir reflexões e discussões sobre patologização, intolerância e discriminação. O PENSES é um espaço acadêmico, vinculado ao Gabinete do Reitor, responsável por promover discussões que contribuam para a formulação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento da sociedade em todos seus aspectos.

 

 

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