Petra Costa: “Temos uma tolerância doentia com a falta de respeito às mulheres”

A cineasta Petra Costa falou a ÉPOCA sobre seu novo filme, “Olmo e a Gaivota”, a revolução feminina no Brasil e seu papel como ativista

Por THAIS LAZZERI, do Época

Não é preciso ter filhos nem ser mulher para entender a batalha perturbadora que se passa em Olmo e a Gaivota, novo filme de Petra Costa. Olivia é uma atriz às vésperas de encenar um dos trabalhos mais importantes de sua vida em uma turnê internacional, A Gaivota, de Anton Tchekov. Então, ela e seu namorado, Serge, que também atua na peça, descobrem-se grávidos do primeiro filho. Dias depois, Olivia sofre um sangramento, que a obriga ficar em repouso. Como Rapunzel, no quinto andar de um prédio parisiense sem elevador, Olivia – na companhia das co-diretoras Petra e Lea Glob – assiste ao extraordinário invadir a própria vida. Da Olivia enquanto gaivota, uma atriz com desejo de trabalhar e voar alto, e da Olivia enquanto olmo (nome de uma espécie de árvore), que procura criar raízes. “É uma troca de pele mesmo”, diz.

Petra se inspirou no cinema nórdico para mergulhar nas questões psicológicas da mulher, “sem melodrama e sem medo”, como ela diz. Buscou a introspecção também em literaturas femininas, como Clarice Lispector e Virginia Woolf. Seu documentário anterior, Elena, foi o trunfo para captar a equipe do filme. Primeiro, conquistou a atenção do ator e diretor Tim Robbins  no Festival de Belim, em 2013. Robbins é o editor-executivo de Olmo e a Gaivota. Depois, Elena foi o convite para Olivia e Serge, o casal do filme. Uma amiga de Petra, a diretora de teatro Marta Kiss Perrone, os apresentou quando eles estavam no Brasil com o prestigiado Teatro du Soleil.

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Trecho do filme Olmo e a Gaivota, co-dirigido por Petra Costa (Foto: Jorge Bispo)

O filme já conquistou dois prêmios. Na semana passada, Petra recebeu o prêmio de Melhor Documentário no Festival do Rio e o dedicou às mulheres, defendendo que nenhuma mulher sofra violência. Assim que o vídeo entrou nas redes sociais, a página do filme foi invadida por comentários machistas e palavras de baixo calão, para dizer o mínimo. “É uma opressão invisível que só as mulheres conhecem”, diz Petra. Em resposta, Petra convidou atores que tinham visto o filme para discutir o direito da mulher ao próprio corpo. Em três dias, o curta alcançou sete milhões de visualizações. Confira a entrevista com a cineasta:

ÉPOCA – Na cerimônia do Festival do Rio, você dedicou o prêmio à sua mãe e às mulheres, desejando que nenhuma mulher seja vítima de assédio e machismo. No mesmo dia, tornou-se vítima da mesma violência. Você imaginou que seria um alvo?
Petra Costa – 
Nunca. Essas pessoas não pararam de invadir nossas páginas. É de um baixo nível, é horrível e é banalizado. Nós, brasileiros, temos uma tolerância indevida à falta de respeito com as mulheres. Essa tolerância é uma doença. Em resposta a esses comentários, produzimos um curta discutindo os direitos da mulher sobre o próprio corpo e publicamos nas redes sociais com a hashtag #agoraéquesãoelas.  Em três dias, alcançamos sete milhões de visualizações. É bacana? Sim, mas os comentários ofensivos continuam chegando. Numa universidade americana, um aluno que falasse isso seria expulso. No Brasil, chamam a presidente de vadia e ninguém faz nada.

ÉPOCA – Por isso participou da marcha na Avenida Paulista contra o projeto de lei do deputado Eduardo Cunha?
Petra –
 Não pensei duas vezes em ir para a Avenida Paulista protestar. Eu me considero feminista há um bom tempo, mas isso é recente no Brasil. Há alguns anos, toda vez que falava que era feminista para amigas brasileiras, era xingada: ‘O que é isso? Odeia homem?’. De um ano para cá, essas amigas que me condenavam começaram a se declarar feministas. Vozes fortes, como as da Marcha das Vadias (movimento que surgiu em 2011), começaram a politizar a questão da mulher e ressignificar o feminismo. O Brasil está vivendo hoje uma coisa que deveria ter acontecido nos anos 60. Vivemos a falsa sociedade do homem cordial, que respeita a mulher. Mas a gente sabe que não é assim. Mulheres são vítimas de assédio, machismo, estupro. Ter no Congresso um deputado como o Eduardo Cunha, uma figura poderosa exigindo e promovendo ações retrógradas, uniu ainda mais as mulheres. Esta semana, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau elegeu sua equipe dividindo igualmente os cargos entre homens e mulheres. Quando perguntaram o porquê, ele riu e respondeu: ‘Porque estamos em 2015’. É isso. Não dá mais para esperar. No Brasil a mulher não tem direito ao próprio corpo. Não temos um programa de planejamento familiar e o aborto é ilegal. É uma hipocrisia ser contra, porque o aborto vai acontecer sempre. A diferença é que a mulher pobre vai morrer e a que tem condições financeiras vai fazer numa clínica particular.

ÉPOCA – No filme, você faz uma abordagem real sobre a mulher contemporânea. Contrapõe o desejo de trabalhar e voar alto, como a gaivota, e ser mãe, que cria raízes, como olmo (nome de uma espécie de árvore na Itália). O que descobriu?
Petra –
 Minha mãe, Li An, sugeriu o nome do filme. Olmo tinha um outro significado especial, foi o nome que Olivia e Serge escolheram para o filho. Olmo e a Gaivota é a luta entre as raízes e a liberdade. Dos 20 anos até os 34, a maior segurança de Olivia é que ama a vida do artista. Então, vem Olmo, o bebê, e Olivia tem medo de criar raízes sem perder o que mais amava nela. Essa é a loucura. A minha primeira pergunta ao começar o filme foi: o quanto a gravidez não é a morte da mulher que existia para uma nova mulher renascer. A gaivota perde asas para ganhar raízes. É uma troca de pele mesmo. Olivia me disse que se manteve serena graças a nossa presença e ao projeto. São pouquíssimos os filmes que exploram a gravidez. Nós, mulheres, temos que virar outro ser humano em nove meses. Não é natural, como antigamente. As mulheres hoje escolhem passar por isso, e essa escolha virou um dilema. Isso é mais uma opressão na vida da mulher. Essas questões estão escondidas dentro da mulher e não podem ser naturalizadas. Olivia estar em repouso, dentro de casa, tornou mais pungente essas questões porque ela teve tempo de se observar. Quando a gente para e investiga a si mesmo pode entrar em grandes crises, que levam a evoluções.

ÉPOCA – Retratar mulheres, então, é uma questão pessoal?
Petra – 
Comecei a fazer cinema porque não via nas telas filmes com personagens que me representassem, especialmente no Brasil. Como atriz, raramente conseguia fazer papéis de questões relevantes para mim. Decidi fazer Elena quando vi o filme Bicho de Sete Cabeças(sobre drogas e internação em clínicas de reabilitação). Eu via isso acontecer com meus amigos. Mas não via no cinema retratos do que aconteceu comigo, com minha mãe e amigas e minha irmã, a depressão – e o suicídio – por não se adaptar aos que os outros querem de você. Com Olmo e a Gaivota mergulhei no feminino. São assuntos urgentes que não foram retratados. Então, sim, encaro isso como dever. A opressão contra a mulher está dentro de casa, acompanha o namoro, o casamento. O namorado força você a fazer sexo e você fica calada, porque ele é seu namorado. As mulheres aprendem a agradar, e você passa boa parte da sua vida fazendo isso, vivendo assim. Essa é uma discussão que fazemos no filme. Nós não aprendemos a dizer não. Para mim é um grande trabalho de emancipação diária dizer não. Ainda não vejo na minha educação onde isso foi incrustado, mas foi.

ÉPOCA – No filme, você investiga a intimidade da mulher sem usar a palavra. Como em Elena, seu filme anterior, o corpo fala mais que o personagem. Esse traço mora em você?
Petra –
 As coisas mais preciosas na nossa vida independem de palavras. O poder do não verbal me apaixona no cinema. Se não pudesse filmar, talvez escrevesse. O cinema chega nesses lugares íntimos, da dança, do olhar e dos sentimentos viscerais com muita potência. Sempre gostei de sair do cinema transtornada pelas emoções do filme. Minha irmã, Elena, fazia muito isso. As imagens de arquivo dela eram poderosas. Ouvi de muitos amigos dela: ‘Elena era dança’. Tento sempre mostrar as emoções com o corpo nos meus projetos. Como fui acometida por essa tragédia (Petra tinha 7 anos quando Elena se suicidou), o que era uma questão pessoal se tornou política. Questões pessoais e íntimas podem tirar a vida das pessoas.

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