As lições da campanha #SeráQueÉRacismo a um país que não se assume racista. Por Cidinha da Silva

Como os blogues, que tiveram diferentes gerações, com características distintas, parece ocorrer algo semelhante com as hashtags, numa velocidade maior. Primeiro foram as ondas de #somostodosfulano ou #somostodoscicrano, devidamente criticadas em sua superficialidade e efeito inócuo, para além da expressão, muitas vezes, de mera indignação seletiva. Permanece vivo em nossa memória, o movimento de todos os que eram Charlie Hebdo.

Por Cidinha da Silva, do DCM

Contraditoriamente, não havia narrativa solidária similar para as meninas sequestradas em escolas da Nigéria e tornadas escravas sexuais dos homens do grupo terrorista Bocco Haram ou para os milhares de civis mortos por eles. Ou ainda, para as dezenas de estudantes cristãos fuzilados pelo Estado Islâmico em outros países africanos, como o Kênia.

Surgiram, posteriormente, as hashtags mais criativas e mobilizadoras de causas sociais. Os dias de campanha de #MeuAmigoSecreto, por exemplo, resultaram em aumento de 40% no número de denúncias de casos de mulheres em situação de violência ao Disque 180. Provavelmente protagonizadas por pessoas que se sentiram empoderadas por todas aquelas vozes abafadas que, finalmente foram ouvidas, lidas.

Agora chegou a vez de viralizar o combate ao racismo. Levando em conta as características estruturais do racismo brasileiro que nos impinge o desgaste cotidiano de quebrar ou pular as pedras roladas pelo caminho de quem procura sair do lugar comum e superficial de (in)compreensão de sua operacionalidade. Surgiu a hashtag #SeráQueÉRacismo?

Um conceito que pode nos ajudar a pensar a aplicação desta campanha é o de “letramento racial”. O pensamento da teórica afro-estadunidense France Winddance-Twine sobre o tema foi sistematizado pela pesquisadora brasileira Lia Schucman e publicado em sua tese de doutoramento. Segundo essa sistematização, o letramento racial constitui um conjunto de práticas, baseado em cinco fundamentos: O primeiro é o reconhecimento da branquitude. Ou seja, o indivíduo reconhece que a condição de branco lhe confere privilégios.

O segundo é o entendimento de que o racismo é um problema atual e não apenas um legado histórico. Esse legado histórico se legitima e se reproduz todos os dias e, se o indivíduo não for vigilante, ele acabará contribuindo para essa legitimação e reprodução.

O terceiro é a compreensão de que as identidades raciais são aprendidas. Elas são o resultado de práticas sociais.

O quarto fundamento é tomar posse de uma gramática e de um vocabulário racial. Para combater o racismo, temos de ser capazes de falar de raça abertamente, sem subterfúgios.

O quinto é a capacidade de interpretar os códigos e práticas racializadas. Isso significa perceber quando algo é uma expressão de racismo e não tentar camuflar, dizendo que foi um mal-entendido.

Estou de acordo com os cinco fundamentos apresentados, entretanto, cabe destacar uma diferença também fundante entre o racismo brasileiro e estadunidense: lá, nos EUA, parte-se do pressuposto de que o racismo existe. Aqui, no Brasil, quem sofre racismo e discriminação racial precisa provar que sofreu.

O ônus da prova continua sendo de quem foi discriminado. Por isso a #SeráQueÉRacismo? é plena de sentidos, pois exemplifica situações reais de dissimulação das práticas racistas. É uma abordagem de primeiras letras, ou seja, um descortinar das percepções básicas do que seja o racismo estrutural e as práticas discriminatórias que o sustentam.

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