O afeto que se emplaca

por Fernanda Pompeu

 

Sampa tem perto de cem mil ruas. Não incluindo as clandestinas, indocumentadas que brotam no google maps como marias-sem-vergonha. Ruas correspondem a frases no parágrafo-cidade. Elas vão e vêm transportando as histórias dos que moram, trabalham ou se divertem nos seus endereços. Ruas também são os carimbos da diversidade urbana.

Há ruas arborizadas e ruas que poderiam estar no deserto do Saara. Ruas planejadas e ruas tortas. Estreitinhas, largas, compridas, curtas. Ruas que são becos, ruas sem saída, ruas perigosas. Ruas que, de repente, mudam de nome. A avenida Sumaré, sem aviso, vira Paulo VI. Sem contar as que mudam de cara e classe social. A avenida Angélica, por exemplo, começa pobre e vai enricando.

O poeta Mario de Andrade, paulistano da gema, pediu que ao morrer: “Meus pés enterrem na rua Aurora / No Paissandu deixem meu sexo / Na Lopes Chaves a cabeça”. Não à toa, a canção que traduziu a cidade de São Paulo para o Brasil, composta por um baiano, começa com os versos: “Alguma coisa acontece no meu coração / que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João.”

Ruas mantêm uma misteriosa relação com seus nomes. Eu nasci na rua Bambina, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Sou tão antiga, que o Rio ainda era Capital Federal. Sempre acreditei haver alguma intencionalidade mágica no fato de eu ter nascido menina e a rua se chamar bambina. Verdade que tenho um amigo que nasceu na rua do Bom Jesus, antiga rua dos Judeus, no Recife, e é um ateu irreversível.

Acho errado essa prática de vereadores, para agradar seu eleitorado ou obsequiar famílias de banqueiros, mudarem o nome de ruas. A deliciosa Estrada das Boiadas, na zona oeste de Sampa, virou a insípida Diógenes Ribeiro de Lima. A charmosa Rodovia dos Trabalhadores, que homenageava um imenso coletivo, é hoje Ayrton Senna.

Nada contra o Diógenes que nem sei quem foi, ou o Senna de quem fui fã. É que mudar nome de caminhos é tão esquisito como trocar nome de pessoas. Imagine uma Marlene virar Patrícia depois dos cinquenta. Ou ser um Gabriel até os vinte, e tornar-se um Eduardo até morrer. Não conjumina. É claro que, às vezes, é o contrário. A rua tem um nome que não casa com seu espírito. A rua do Bosque, na Barra Funda, tem árvores contadas nos dedos.

Na favela do Madalena, em Sapopemba, na gloriosa zona leste, havia uma rua que desaguava em um córrego a vau. Lá, nos anos 1990, traficantes e policiais corruptos desovavam corpos para encobrir seus crimes. A comunidade se organizou, ergueu um centro de convivência, e a rua passou de maldita a bendita. Os moradores puseram o nome de rua Nova.

Outra curiosidade – creio que uma experiência bem comum – são as ruas de iniciação. Aquelas onde um grupo de amigos vivenciou primeiros amores, primeiras traições, bebedeiras, canções, identidades. No meu caso, essa rua foi a Cardoso de Almeida, em Perdizes. Até hoje, trinta anos depois, as amigas lembram da época da Cardoso, das festas da Cardoso, da turma da Cardoso. É uma metáfora, na qual Cardoso de Almeida toma o lugar de juventude.

Veja outra matéria de Fernanda Pompeu

O negro de alma negra: Uma entrevista com Oliveira Silveira

Fernanda Pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé

Fonte: Nota de Rodapé

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