Coisas que nem Deus mais duvida! por Cidinha da Silva

por Cidinha da Silva

A senhora brandia os braços, inflava bochechas e olhos, tremia a boca pequena. Era Madame Mim em performance para leitura do poema.

Coisa boa não viria dali. A colega já havia feito caras e bocas de incredulidade quando apresentei meus livros no sarau. Reparei que não aplaudiu, assim como as outras pessoas fizeram com a convidada para lançar livro naquela noite.

Houve um preâmbulo antes do poema, a autora dizia: “no meu tempo, como vocês podem ver, eu sou velha, a gente chamava os pretos que a gente gostava de negão, quando era homem, neguinha, quando era mulher. Era carinhoso. Hoje, se a gente não for politicamente correto, pode até ser preso”. Nessa hora, seus olhinhos de Madame Mim encontraram os meus e, de pronto, tratei de exuzilhá-los, fechei meu corpo com a mão direita e com a esquerda levantei meu Tridente.

A chuva apertou e N’Zila rodou, me levou para fora das paredes de vidro da biblioteca, para o local exato onde havia feito minha saudação de chegada. Era uma encruza da Henrique Schaumann com Cardeal, 777, era o número da casa. N’Zila dançou para mim, apontou o céu, logo cortado por um raio de Kaiongo. Eu saudei N’Zila e o raio, agradeci. Quando um deles ilumina meu caminho é sinal de anunciação.

De volta ao sarau, de olhos abertos, aqueles versos mal feitos e ressentidos machucavam meu coração. A mulher velha desprovida de sabedoria destilava mágoa e saudade dos tempos da escravidão. Dizia num poema torto que solução para o racismo é que os pretos se pintem de branco e se tornem cinza e os brancos se pintem de preto, obtendo o mesmo resultado. Se ela fosse um pouco mais inteligente e criativa, honesta também, seu verso expressaria o desejo de que os negros virassem cinzas.

Terminada a performance ouviram-se uns fracos aplausos constrangidos, outros, consternados, afinal, tratava-se de uma idosa e muita gente acha que a idade justifica tudo. Duas ou três pessoas, além de mim, não descruzaram os braços. Um rapaz muito sério, que se eu encontrasse andando pela rua, julgaria mestiço, levantou-se negro e mandou uma letra de rap aguda sobre a hipocrisia das relações raciais no Brasil. Tinha uns palavrões cabeludos e o menino de tridente nos dentes colocou os tridentes nos devidos lugares.

Eu reuni meus livros e trocados, olhei a chuva intermitente e vi Kaiongo a minha espera, absoluta e bela, próxima ao cemitério. Guardei a distância respeitosa da natureza que não se afina com a casa dos mortos, Kaiongo veio sorridente, me abraçou generosa, só amor. Eu entreguei o que era dela: “toma, Senhora dos Raios, leva daqui essa carcaça, esse egum da mentalidade colonial e racista que inda sibila entre os vivos.” Kaiongo sorriu outra vez, cúmplice, e desapareceu soberana na noite sem lua.

 

 

+ sobre o tema

Fome extrema aumenta, e mundo fracassa em erradicar crise até 2030

Com 281,6 milhões de pessoas sobrevivendo em uma situação...

Presidente de Portugal diz que país tem que ‘pagar custos’ de escravidão e crimes coloniais

O presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, disse na...

O futuro de Brasília: ministra Vera Lúcia luta por uma capital mais inclusiva

Segunda mulher negra a ser empossada como ministra na...

para lembrar

Obama anuncia sanções inéditas à Síria e pede a saída de al-Assad do poder

Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, pediu pela primeira...

Menos de 1% dos municípios do Brasil tem só mulheres na disputa pela prefeitura

Em 39 cidades brasileiras, os eleitores já sabem que...

Os negros nos protestos antidemocráticos. Por Cidinha da Silva

Nas manifestações seletivas contra a corrupção no país, pessoas...

Desigualdade ambiental em São Paulo: direito ao verde não é para todos

O novo Mapa da Desigualdade de São Paulo faz um levantamento da cobertura vegetal na maior metrópole do Brasil e revela os contrastes entre...

Foi a mobilização intensa da sociedade que manteve Brazão na prisão

Poucos episódios escancararam tanto a política fluminense quanto a votação na Câmara dos Deputados que selou a permanência na prisão de Chiquinho Brazão por suspeita do...

MG lidera novamente a ‘lista suja’ do trabalho análogo à escravidão

Minas Gerais lidera o ranking de empregadores inseridos na “Lista Suja” do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A relação, atualizada na última sexta-feira...
-+=