Os Rolezinhos e a violência de classe e raça no Brasil – Por Fausto Antonio

Os “rolezinhos” revelam dois dados da realidade brasileira: de um lado, o totalitarismo do consumo e do branqueamento do imaginário e dos espaços, de outro, a violência dos conflitos de classe e raça no Brasil. Os rolezinhos correspondem, a exemplo de outras práticas sociais desenvolvidas para superar o racismo, a violência policial e o abandono social e cultural, às práticas sociais de jovens negros e pobres para atribuir novos significados a lugares e também aos valores alienados e alienantes da sociedade de consumo. Não é por outra razão que os Shoppings e as presenças desse segmento social passaram a significar mais do ponto de vista da compreensão da realidade sócio-espacial e igualmente das relações étnico-raciais. Assim, são extremamente improdutivas as análises que associam ou que querem as intervenções sistematizadas pelos roles no simples rol do consumo ou da luta para ingressar apenas num espaço de acomodação e de convivência pacífica com a anticidadania materializada pela figura do consumidor. A intervenção diz outra coisa, ou melhor, a intervenção brada que os rolezinhos se instalam sobre os lugares reservados para os ricos e brancos, o que altera o valor e a significação do ícone do consumo, da intervenção e das informações trocadas via Redes Sociais.

Podemos dizer, considerando as intervenções nos Shoppings, que os jovens negros e pobres incorporam significados e constroem novas representações e tessituras que revelam os seus cotidianos, os seus lugares e as desigualdades raciais, sociais e sócio-espaciais que lhes deram condições, a partir do que eles realmente são socialmente, de organizar um confronto num espaço hegemonizado pelo consumo, branqueamento e medo.

Há outras necessidades e outras carências empurrando e sedimentando as intervenções, elas não são produto apenas da troca de mensagens nas Redes Sociais, não são fruto da imaginação. Os eventos denominados de rolezinhos estão encarnados no corpo, nas relações étnico-raciais e sócio-espaciais, ou seja, são eventos que correspondem e respondem às necessidades imediatas, a exemplo das cotas para negros, mas ancorados nas desigualdades estruturais históricas. Por outras palavras, é algo consistente e que encontra respaldo objetivo nos lugares de origem desses jovens que, mesmo nos Shoppings, querem se referir, avulta a presença cantada e corpórea da cultura de preto, pobre e favelado, aos seus contextos, a suas realidades coletivas e aos lugares nos quais eles vivem e lutam, às avessas dos consumidores dos Shoppings, contra a escassez e contra a violência policial.

Os rolezinhos se instalam sobre lugares reservados para os ricos, os brancos e/ou para o branqueamento e consumo, o que altera o valor e a significação das intervenções nos Shoppings feitas por jovens negros e pobres, que carregam as especificidades das desigualdades estruturais nos corpos, idade, e na horizontalidade histórica dos seus lugares, que revelam sujeitos e autorias numa tessitura entre morros, favelas, bairros abandonados e lugares destituídos de recursos, que deveriam ser promovidos pelos governo e pelo Estado. Não é a internet, veículo de informação, que possibilita a verdadeira comunicação entre os jovens dos bairros destituídos de bens materiais e sociais. A comunicação, a política, é feita necessariamente com o próximo, a informação é apenas um dispositivo mas, a rigor, a comunicação e a união vem da proximidade compartilhada no cotidiano e nas formas de solidariedade engendradas para superar a escassez, a violência policial e a perseguição aos valores civilizatórios, entre outros, do Funk ,do Rap e dos sambas. Tal projeto só pode ser delineado ou captado se considerarmos a existência de uma comunidade, no mínimo, de sentidos políticos, de sentimentos e pertencimentos culturais e identitários entre os jovens negros e pobres, que transcendem às Redes Sociais ou que passam também pelas Redes Sociais, mas que são sobretudo uma criação e elaboração política e social coletiva tecida profundamente a partir dos lugares. O evento é, portanto, um meio pelo qual o excluído se inclui não para o consumo, mas para revelar a sua organização social, a sua identidade e a impossibilidade de inclusão nos termos hegemonizados pelos Shoppings.

A intervenção, os rolezinhos, diz muito a respeito dos lugares, do cotidiano e da composição étnico-racial e social dos seus componentes mas, a bem da compreensão do fenômeno, nos diz mais ainda sobre a sociedade brasileira. É a sociedade brasileira que está em risco, pois é ela que constrói e mantem os espaços segregados dos Shoppings. É preciso a percepção do movimento conjunto da sociedade e dos eventos promovidos nos Shoppings. A propósito, eles nos mostram a força da comunicação entre os lugares, isto é, entre sujeitos e autorias que se encontram a partir da união promovida pelas experiências cotidianas e pelos lugares, que empiricizam, na violência policial, terror cotidiano, nas perseguições às manifestações do Funk, do Rap e dos sambas, os problemas estruturais a serem superados, isto é, o racismo e a brutal desigualdade social expressa pelas relações sócio- espaciais brasileiras.

Mesmo acessando as redes sociais, os jovens pobres e negros não são hegemonizados pelo totalitarismo do consumo e do branqueamento, pois eles carregam as especificidades corpóreas e cotidianas dos seus lugares para o conflito e para a explicitação de novas e complexas necessidades, que transitam pelo imaginário do enegrecimento físico e, no mesmo movimento, pela corporeidade e pela tessitura dos lugares do Funk, do Rap, dos sambas, dos alagados, das favelas, dos morros e dos bairros abandonados num embate com os frequentadores e sustentadores dos espaços segregados dos Shoppings. Desse modo, os rolezinhos mudam as coisas, atacam os ícones do branqueamento e transformam, mesmo que momentaneamente, o cotidiano do lugar reservado para a segregação racial, social e espacial e impõem novas características repassadas pela corporeidade e realidade concreta dos seus cotidianos e lugares que, a rigor, mudam o conteúdo dos Shoppings e mais ainda a sua significação, na medida em que os lugares, empiricizados pelos jovens negros e pobres, revelam os conflitos de classe e raça. Em outras palavras, podemos afirmar que os rolezinhos tem uma duração organizacional que transcende o evento em si e, sem dúvida, reside aí a sua maior força.

 

Fausto é escritor e professor da UNILAB

 

 

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    Fonte: Lista Racial

     

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