Conforme já tivemos a oportunidade de demonstrar (Nzumbi, 2010[1]), a política criminal do Estado brasileiro, travestida historicamente sob a função anunciada de “segurança publica” e armada pelo aparato de controle penal e o poder estatal de policia, empreende, deliberadamente, através de todos os poderes deste Estado, um processo seletivo (discriminatório e/ou discricionário) de criminalização, que por sua vez, adota critérios sócio-raciais para eleição de um padrão de sujeitos a se suspeitar, perseguir, penalizar e enfim eliminar: jovens negros. Se assimilarmos a semântica dada pelos dicionários da língua portuguesa, o termo “genocídio” significa “eliminação de um povo”, de um determinado tipo de gente[2]. Em nossa análise entendemos ainda que este processo de criminalização resulta em duas formas históricas e flagrantes de genocídio no Brasil: a execução sumária, empreendida pela polícia e grupos para-policiais e o encarceramento massivo de jovens negros.
A análise sobre política criminal travestida como segurança pública na Bahia permite entender que o sistema penal brasileiro tem como resultado de seu caráter seletivo e racista, as formas mais diretas de genocídio do povo negro; entender ainda que este genocídio estrutura o modelo de Estado brasileiro e se apresenta como realidade nacional no âmbito de todos os seus poderes; e que, como estrutura, tal modelo de estado, está para além da conjuntura, ou seja, não é uma questão que marca apenas um ou outro governo; é uma questão que marca a prática política e a ordem social sustentada historicamente por este modelo de Estado. Segundo o dicionário Aurélio o substantivo genocídio [Degen(o)-2 + -cídio.] significa: Crime contra a humanidade, que consiste em, com o intuito de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, cometer contra ele qualquer dos atos seguintes: matar membros seus; causar-lhes grave lesão à integridade física ou mental; submeter o grupo a condições de vida capazes de o destruir fisicamente, no todo ou em parte; adotar medidas que visem a evitar nascimentos no seio do grupo; realizar a transferência forçada de crianças dum grupo para outro.
Na realidade vivenciada por comunidades negras em ruas, favelas e prisões na Bahia é possível se flagrar qualquer uma destas hipóteses anunciadas. De fato, já não há meio possível de velar a face genocida da atual política de segurança pública na Bahia. Para entender o cenário desta política, é necessário analisar os discursos e contra-discursos – cada um dos mecanismos e estratégias utilizadas para legitimar ou enfrentar o processo de criminalização a qual nos referimos.
A Secretária de Segurança Pública e a manipulação de informações sobre os “indicadores de violência”.
A SSP-Ba (Secretaria de Segurança Pública da Bahia) anunciou recentemente a aplicação de cerca de 110 milhões de reais só na ampliação da sua frota – 1.332 viaturas – motocicletas, caminhões, automóveis, rabecões, carros-presídio, além de um helicóptero. Na mesma oportunidade, como uma tentativa de maquilar dados e desviar a atenção da opinião pública sobre a carnificina empreendida por sua polícia em Salvador e região, o então secretário de segurança pública anunciou também o que representaria, segundo ele, a redução dos principais índices de violência ocorrida durante a sua gestão (SSP-BA, 2010)[3]. Menos de um mês depois, a imprensa divulga números alarmantes, sobretudo no que toca às execuções sumárias empreendidas contra jovens negros – o que na opinião rasa dos jornalistas, fez titubear o titular da pasta de segurança pública e enfim, depô-lo para que se assuma um técnico com uma imagem menos desgastada.
Por outro lado, a análise sobre os números permitem verificar toda ferocidade resultante da política de segurança publica e também exigem a apreciação de um olhar técnico diferenciado dos diagnósticos estatísticos disponibilizados pelo sistema de informações da SSP. Órgãos da SSP, por exemplo, divulgaram que a “intensificação do combate ao tráfico de drogas e a renovação da frota de viaturas das polícias Militar, Civil e Técnica, incluindo a aquisição de mais um helicóptero para o Grupamento Aéreo da Polícia Militar (Graer provocaram o declínio dos principais índices de violência. Durant a apresentação feita pelo secretário César Nunes, a SSP atribuiu à ampliação do efetivo da Polícia Militar a razão através da qual se realizou tal redução nos índices de violência em Salvador; Alardeou com o entusiasmo de um vendedor os números que lhe interessava mostrar, mas de fato, o que tentava vender era o seu modelo de gestão como algo que dá certo. Então disse orgulhoso sobre a sua gestão: “O ano de 2010 foi de continuidade dos programas e projetos estabelecidos no Plano Estadual de Segurança Pública, que começaram a ser implantados em 2008, quando assumimos a SSP”. Na mesma oportunidade, Nunes exibe alguns números por ele destacados em 2010: Foram mais de 1,7 toneladas de maconha, cerca de 500 quilos de cocaína e 433 de crack retirados de circulação durante operações e revistas de rotina[4].
Apesar de não oferecermos aqui uma análise fundada na frieza dos dados estatísticos, a lida com a questão criminal aqui na Bahia também nos fez aprender a analisar os números. Na contramão do que foi propagandeado pelo Governo, diversos indicadores, demonstrados através de fontes confiáveis de pesquisas, revelam o genocídio em curso na Bahia. Segundo o relatório Saúde Brasil 2009[5], Salvador é a quarta capital do país com o maior número de homicídios. Em 2008, a taxa de homicídios, principal indicador da violência, alcançou o patamar de 57,1 mortes por homicídio a cada 100 mil habitantes. Ao pensar na Região Metropolitana de Salvador, a situação não é mais animadora. De 2000 a 2007, a taxa de homicídios variou de 11,6 para 50,4 mortes por cem mil habitantes – segundo outro estudo, o Mapa da Violência[6], publicação feita com base em dados do Sistema Único de Saúde (SUS), um aumento de 400% no número de homicídios. De acordo com a Secretaria da Segurança Pública, 4.796 pessoas foram assassinadas no Estado em 2009 – 48,9% a mais do que em 2006[7]. Salvador fechou o ano de 2009 com 57,8 homicídios para cada 100 mil habitantes – cinco vezes a taxa da capital paulista e quase o dobro da registrada na cidade do Rio de Janeiro. Apesar de a Secretaria de Segurança Pública da Bahia comemorar a redução dos índices de violência na capital e interior, um dos principais indicadores, o número de homicídios dolosos (quando há intenção de matar) cresceu em comparação com o mesmo período do ano passado. De janeiro a novembro de 2009, foram registrados 4.340 homicídios em todo o estado. Já em 2010, no mesmo período, ocorreram 4.420 homicídios. Quando falamos da realidade nacional fazendo um recorte de raça, os números assustam ainda mais. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República demonstra através do (IHA) Índice de Homicídios na Adolescência, que o risco de um jovem negro ser assassinado cresceu no país, chegando a uma probabilidade quase 4 vezes maior em relação a um jovem branco.[8] Vários setores racistas da elite brasileira se manifestam severamente contra as cotas raciais, mas apenas se manifestam no que se refere à universidade e outros espaços de poder. Nada falam, por exemplo, ao saber que a reserva de vaga no cemitério dos assassinados é de 130 % a mais para jovens negros[9].
Para além de um teatro em qual o gestor tem que forjar, através da manipulação de dados, uma conjuntura minimamente aceitável para a imprensa, se verifica não apenas em Salvador e Região Metropolitana, mas em todo território nacional, a manutenção de uma política ostensiva de criminalização e dizímio da juventude negra através da parafernália penal do Estado brasileiro. A matemática oficial, por si só, não dá conta de fazer uma análise confiável dos fatos, nem é capaz de decodificar a dor sentida por mães negras que choram sobre os corpos de seus filhos. Apesar da maioria dos jornais entenderem que os índices de violência “derrubaram” César Nunes, é necessário dar atenção a outra perspectiva de analise: a das pessoas vitimadas por esta “maquina de moer gente” travestida de “segurança publica”.
Segurança Pública na Bahia – Discursos e contra-discursos – pedaço de uma realidade nacional.
Enquanto a política executiva é reordenada nos bastidores dos estados e no governo federal, a política de desenvolvimento consolidada como “PAC” tem exigido para segurança pública uma demanda de controle social condizente ao status de um “país emergente”. Então, o Brasil, através de sua política governamental de segurança (O PRONASCI, SUSP etc.), para sustentar a fama internacional de “país em vias de desenvolvimento”, tem lançado mãos de inúmeros mecanismos de gestão que resultam na morte e/ou criminalização sistemática de um determinado tipo de gente. Esse “tipo de gente” pode ser conhecido no perfil que agrega a clientela principal do sistema carcerário: jovens negros, oriundos de territórios guetificados (Favela).
Em inúmeros momentos de intervenção social foi denunciado o caráter fascista da administração de César Nunes. Já em 2008, frente o ímpeto de um gestor que nega a competência de “segurança publica”, “caça” suspeitos e se auto-proclama gestor da “secretaria de policia”, a Campanha Reaja! se posicionou. O caráter notoriamente neo-lombrosiano e fascista foi expresso em mega-operações como “saneamento 1” e “saneamento 2” e outras intervenções policiais, em quais, se verificou o falseamento de provas, a exposição gratuita e imoral da imagem de suspeitos (criminalização midiática) e execuções sumárias empreendidas por representantes legais do Estado. Inúmeras denúncias foram encaminhadas para o Ministério Público, para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores da Cidade de Salvador e Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa. A Secretaria Nacional de Direitos Humanos, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e até mesmo a ONU foi através de um dossiê que reunia dados emblemáticos de criminalização e/ou execução sumária[10]. A CONSEG (Conferencia Nacional de Segurança Pública) também foi denunciada como um jogo de cartas marcadas, cujo fim primordial foi legitimar o PRONASCI, uma política de segurança aliada a interesses particulares. O ENPOSP (Encontro Popular pela vida e outro modelo de Segurança Pública) estabeleceu um contraponto social importante frente à lógica genocida de segurança pública em curso no Brasil.[11]
No campo acadêmico, os gestores em segurança pública não podem dizer que desconhecem a existência de perspectivas cientificas geradas no seio do movimento social. Dra Andréia Beatriz, médica e professora da UEFS ao desenvolver seu estudo sobre a identificação da raça/cor da pele no Instituto Médico Legal de Salvador[12], verificou que “a mortalidade no Brasil aumenta conforme se escurece a cor da pele” e aponta a existência de um tal “racismo institucional” como caráter da ação governamental. Resta saber se esse tal “racismo institucional” pode ser entendido como uma ação dolosa dirigida deliberadamente pelo Estado ou se podemos entendê-lo como simples “falha” do sistema em prover direitos. Para a advogada e doutoranda Ana Luiza Flauzina não se sustenta a idéia de que o sistema penal brasileiro está falido quanto ao exercício de sua função principal, pois a tal ressocialização além de não ser identificada como resultado direto da pena de cárcere, não pode ser identificada tão pouco como fim último deste sistema de controle. Esta perspectiva criminológica demonstra ser bastante elucidativa em sua abordagem:
È mesmo importante compreender que o racismo é uma marca de nascença irremovível do sistema penal brasileiro. Digamos de maneira direta: o sistema penal age com tamanho grau de brutalidade e violência porque foi um instrumento pensado para controlar os corpos negros, na lógica de desumanização que o racismo impôs como regra. […] O desgastado discurso da “falência do sistema penal” perde, portanto, qualquer sorte de credibilidade. O sistema funciona e funciona bem. Funciona para os fins para que foi concebido: manter as pessoas onde estão.Mais especialmente, funciona para assegurar os termos de nosso pacto racial, auxiliando na disposição de negros e brancos em espaços concretos e simbólicos diferenciados[13] (FLAUZINA, 2006)
A discussão sobre a intencionalidade de matar (dolo) como marca do processo de criminalização que aqui analisamos evidencia que estamos de fato tratando de um processo histórico de genocídio, ainda que a tecnocracia jurídica continue entendendo o termo como inapropriado[14] . Munida do arsenal de dados acumulados entre 2007-2009 pela Campanha Reaja ou será mort@!, a socióloga Vilma Reis revelou parte deste processo e denunciou em depoimento à CPI da violência urbana o “auto de resistência” utilizado como artefato jurídico-policial que licencia a execução sumária de jovens negros; denunciou os programas de televisão além do PRONASCI que deve aplicar milhões na compra de armamentos, viaturas e construção de novos presídios até 2012[15]. Perspectivas análogas foram também reiteradas vezes colocadas pelo militante negro e professor Hamilton Borges, deixando-nos a certeza de que o dolo genocida, a intenção de matar e/ou criminalizar jovens negros é um principio intrínseco à ordem social brasileira[16].
No entanto, na conjuntura política do ano de 2010, mesmo os setores do movimento social que se posicionam frente à política criminal de César Nunes, não conseguiram fazer reverberar as suas vozes no cenário político e foram silenciados, quando não penalizadas com o isolamento político ou pela criminalização propriamente dita. No entanto, não deixamos de apontar inúmeros casos emblemáticos, constando entre os vários exemplos de ação dolosa e/ou culposa do Estado em casos de execuções sumárias e/ou aplicação de pena extralegal os seguintes fatos acontecidos em 2010:
· Na madrugada do dia 29 de fevereiro dez policiais militares executaram 11 jovens e deram sumiço nos corpos de três adolescentes em Vitória da Conquista. Os assassinatos atribuídos aos PMs ocorreram entre os dias 28 e 29 de janeiro como conseqüência da morte do soldado Marcelo Márcio. Entre a noite e a madrugada do dia seguinte, policiais militares invadiram casas sem mandado judicial, agredindo pessoas, seqüestrando e executando sumariamente suspeitos, dentro das residências e em vias públicas. Os policiais acusados estão lotados no 9º batalhão de polícia militar (BPM /Vitória da Conquista) e na companhia de ações especiais do sudoeste e gerais (CAESQ/ PM);
· Na noite de 4 de março, através de uma ação conjunta realizada pela 37ª Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM) e a Rotamo, agentes do estado realizaram uma chacina que culminou na execução de sete jovens no bairro de Pero Vaz. Estas sete pessoas foram encurraladas e sumariamente abatidas a partir da justificativa de que a referida incursão policial teria sido enfrentada com tiros por estes jovens.
· No dia 4 de outubro, a PM matou dois membros do grupo de rap BKS numa revista em Itapuã. André de Jesus Cardoso foi morto naquela madrugada de segunda-feira ao lado do companheiro de grupo, Tiago Santos Silva. Os jovens, que tiveram suas promissoras vidas interrompidas aos 20 anos de idade, teriam, segundo a polícia,”furado uma blitz e acabaram sendo mortos em confronto”. No entanto, pessoas da família e da comunidade dos jovens negam a versão da polícia e dizem que os jovens foram sumariamente executados;
· No dia 23 de outubro, no assentamento Dom Helder Câmara, situado no distrito de Banco do Pedro, em Ilhéus a Sra. Bernadete Souza Ferreira dos Santos foi vítima de uma sessão de tortura cometida por oito policiais militares. Bernardete conta que estava em companhia de seu marido, o professor de Filosofia Moacir Pinho de Jesus, quando os policiais chegaram na comunidade com um jovem algemado. Ela e o companheiro questionou a presença dos PMs alegando que estes só poderiam estar mediante mandato judicial, já que a área do assentamento é protegida por legislação federal. Testemunhas contam que ao ser detida por desacato à autoridade, o orixá Oxossi respondeu incorporando a Sra. Bernadete. Ainda assim, os policiais imobilizaram o corpo de dona Bernadete, pisando-lhe o pescoço e submetendo-o a uma sessão de tortura sobre um formigueiro;
· 21 de novembro de 2010- O garoto Joel Castro foi alvejado por uma bala ponto quarenta enquanto se preparava para dormir dentro de sua casa. A imprensa, em consonância com informações da polícia, a princípio noticiou que o garoto teria sido vitima de “bala perdida”. No entanto, o fato é que um projétil de arma de fogo adentrou o rosto do menino, atravessou o cérebro e se instalou em seu crânio. Esse menino teve interrompido seu sonho de se tornar mestre de capoeira. O pai da criança ainda saiu com seu filho desesperado para pedir socorro. Talvez salvasse seu filho se policiais das 40 CPM não o negasse socorro. Apesar do secretario César Nunes ter derramado lágrimas de crocodilo na reconstituição do crime, os laudos periciais do Departamento de Polícia Técnica (DPT) confirmaram que o tiro que matou o menino saiu da pistola calibre 40, usada pelo soldado da Polícia Militar Eraldo Menezes de Souza, lotado na 40ª CIPM (Companhia Independente da Polícia Militar). Este e outros nove policiais estão afastados do serviço, até a conclusão do inquérito; Dentre quais, os soldados Leonardo e Santana, identificados diretamente pelo pai da criança como os agentes policiais que negaram socorro para seu filho.
Como já dissemos outras vezes (Nzumbi, 2009), a manutenção de uma lógica específica de segurança pública mantém também intacto o mesmo projeto de estado baseado no genocídio histórico de populações negras favelizadas[17]. Jornais da imprensa confirmaram a manutenção desta lógica ao anunciar que os índices de violência “derrubaram” o secretário de segurança pública. Para além do olhar frio dos técnicos, para além do que é ou não divulgado pela imprensa, está em curso um processo ininterrupto de genocídio confirmado em cada corpo negro caído no chão. Tal processo é validado por uma lógica de guerra contra o “trafico de drogas” ou ao “crime organizado”. Matar jovens negros paridos de uma sociedade que os rejeita precisa de uma justificativa por parte dos técnicos e gestores. Por isso é que os números e a visão de jornalistas são priorizados em detrimento ao que se vivencia nas comunidades faveladas e prisões do país. O fim anunciado pelo sistema penal brasileiro de combater o crime e regenerar infratores é na realidade uma justificativa retórica, apenas uma argumentação que busca legitimar uma ordem político-social baseada na criminalização de jovens negros (Nzumbi, 2008) [18]. Tal fenômeno corresponde a um pressuposto sempre presente em nossas análises sobre a política criminal na Bahia: que entende que a criminalização, o extermínio e o encarceramento massivo de jovens negros geram poder político e econômico para as elites do país. Quer dizer, alguém sempre lucra com a morte ou prisão de um favelado… e não são apenas corporações empresariais -imprensa policial, indústria armamentista, empresas de gestão penitenciária, milícias armadas- e as elites políticas que ganham. Até mesmo a própria questão entendida por alguns setores contra-hegemônicos como “extermínio da juventude negra” é passível de se tornar produto de ganhos políticos e econômicos através dos apelos das ONG’s de Direitos Humanos e demais organismos do chamado terceiro setor. O corpo negro engavetado no Nina Rodrigues pode neste sentido, ser a moeda de troca para consultorias de fundações internacionais, especialistas em “negociação de conflitos” e tutorias de projetos sociais que vendem a manutenção do genocídio sob o rótulo de caridade, solidariedade ou “responsabilidade social”. Prato cheio para iniciativa privada![19]
Para a imprensa policial de rapina, quanto maior parecer aberração de cada caso anunciado, maior o lucro da manchete, visitada e revisitada milhões através da internet. Mas para quem perdeu um membro de sua família ou comunidade como resultado da ação e/ou omissão de agentes do Estado a conjuntura nacional de segurança pública pode ser entendida hoje sob a forma de um veículo blindado atirando contra membros descamisados de uma comunidade que não conhece nenhum tipo de intervenção estatal, senão a da policia. De fato, a violência é uma linguagem universal, todos entendem. Não foi à toa que as grandes corporações midiáticas exibiram e reprisaram milhares de vezes a ocupação do Morro do Alemão no Rio de Janeiro. Bombardeiam maciçamente em canais de radio, TV e internet a opinião pública com imagens que tentam convencer que há em curso uma espécie de “guerra contra o mal” que conta com o apoio total da população. Nessa representação “o bem” é simbolizado pelas grandes corporações empresariais e o governo e ‘o mal’ simbolizado por um homem negro descamisado que foge diante de um aparato de guerra com imensos poder de destruição. O texto do Artigo 5 da Constituição brasileira é suficientemente nítido. No inciso XLVII se diz que “não haverá a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”. O que não é tão nítido assim é o modo como o Estado contando com a parceria das grandes corporações midiáticas justificam, banalizam e promovem execuções sumárias televisionadas ao vivo para que a população favelada se posicione favorável à sua própria eliminação.
Um mês depois da ocupação do Alemão no Rio de Janeiro, nesse mesmo estado, até o dia 27 de janeiro de 2011, a Polícia Civil contabilizou 837 mortos, segundo eles, “vitimas da chuva”. Aprendemos com o furacão Catrina e com os terremotos no Haiti que quando um fenômeno da natureza que ameaça a vida humana pode ser previsto, a tragédia não é necessariamente uma “catástrofe natural”. Comentários de jornalistas racistas afirmaram, por exemplo, que o Haiti ao ser devastado pelos tremores de terra, estava sendo castigado pela pratica de “macumba”. Mas agora o que podemos dizer da região serrana do Rio de Janeiro? Especialistas comentam que a tragédia foi inúmeras vezes prevista, já que as cidades demonstravam ter óbvios problemas de infra-estrutura para enfrentar a elevação dos índices pluviométricos. Mas o governo não gastou sequer um centavo para intervir numa questão tão séria de Defesa Civil. Realmente uma tragédia como essa provoca comoção em todo mundo. Mas não teve comoção nacional quando se soube que segundo a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, através do (IHA) Índice de Homicídios na Adolescência, 32.912 adolescentes serão assassinados entre 2007 e 2013[20]. Realmente a tragédia das enxurradas é comovente, mas porque a Viva Rio e essas ONGs que estão tão empenhadas em arrecadar recursos não pressionam a Secretaria Nacional de Defesa Civil, Secretaria Especial dos Direitos Humanos e a presidenta para que se gaste os recursos do PRONASCI nesse caso? O que parece é que a concepção de segurança publica se resume em armas, policia e grades para o governo e a desgraça de muitos é um negócio rentável para as ONGs.
Não é a toa que a PM da Bahia ganhou seu primeiro “Caveirão”. O carro blindado chamado tecnicamente de “veículo de apoio tático” (VAT) e apelidado pela própria polícia baiano como “o miseravão” estará à disposição do Batalhão de Choque da PM para incursões em comunidades de favelas daqui da Bahia. Jornais da imprensa escrita de Salvador informaram que “a aquisição do veículo é também uma das medidas do protocolo de intenções que propiciam à Bahia ter Salvador como sede de eventos esportivos internacionais, a exemplo da Copa das Confederações, em 2013, da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas de 2016.” Confirmando a lógica da política nacional de segurança que o governo Dilma pretende apoiar, o governo federal informa que parte do recurso do PRONASCI será investida nessa tal “política de pacificação” das comunidades de favelas. Já se anunciou que as polícias do Rio de Janeiro irá receber uma nova frota de veículos blindados, além dos tanques da Marinha e os seis caveirões já em uso na ocupação no Complexo do Alemão[21].
Aqui na Bahia, como primeira ação prática, Maurício Telles, o novo gestor da pasta de segurança pública, anuncia que quer implantar na Bahia o sistema das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), que estão em funcionamento no Rio de Janeiro. Alega que com as UPPs será possível avançar em áreas que estão atualmente “sob o domínio do tráfico de drogas” reproduzindo um discurso deslocado de segurança pública que não tem o menor sentido em Salvador. Mesmo que o tal “crime organizado” não estabeleça nenhum “Estado paralelo” capaz de trocar tiro com tanques blindados de guerra e helicópteros, as policias e as forças armadas brasileiras precisam gastar suas balas, precisam buscar mais “clientes” para o sistema prisional. Para além das atividades pontuais engendradas pela política criminal brasileira, além do modelo de segurança publica demando pelo PAC e pelo PRONASCI, há uma agenda de faxina sócio-racial a ser cumprida para preparar as capitais brasileiras para grandes acontecimentos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. A análise sobre os meses que antecedem o carnaval na Bahia, por exemplo, demonstram uma sensível oscilação nos principais índices de violência; quase sempre o numero de homicídios dolosos duplicam em relação a outros meses do ano. Não temos fórmula estatística capaz de prever o aumento do número de corpos negros gerados para abrigar eventos com a magnitude anunciada para copa do mundo em 2014 ou as olimpíadas em 2016.
Não são apenas os executivos, federal e dos estados, os setores do poder público que engendram políticas criminais. O legislativo seja em âmbito, federal, estadual ou municipal também exerce a sua influência sobre o funcionamento da Maquina Penal. No senado, por exemplo, os parlamentares acenaram positivamente para as recomendações do relatório do senador Renato Casagrande (PSB-ES) sobre o projeto de reforma do Código de Processo Penal (PLS 156/2009) em sessão extraordinária. Enquanto a matéria ainda não chega na Câmara dos Deputados, a proposta corre o perigo de não ser submetida a apreciação da sociedade civil e ser influenciada pelos lobbies das grandes corporações até ser sancionado pela presidenta. Através de tal legislatura se regulará prerrogativas de novos postos do judiciário criminal, o uso das tecnologias de segurança entendidas como mais avançadas e outras novidades. Um prato cheio para os advogados criminalistas de porta de cadeia que almejam ascender profissionalmente e para as empresas de segurança e administração que certamente lucrarão milhões em monitores, julgamento por vídeo-conferência e outras parafernálias previstas como efeitos da aplicação do novo Direito de Processo Penal brasileiro.
Para a doutrina jurídica, o Direito Penal seria a “Ultima ratio”, a aplicação da pena quando todos os outros direitos falharam. Mas quando se pensa na realidade vivenciada em ruas, favelas e instituições penais pela comunidade negra deste país, verifica-se que o Direito Penal, a política de segurança e todas as armas chegam antes que qualquer outro direito. Aonde não chega a saúde, a educação, o trabalho/emprego e renda, chega a polícia, os grupos paramilitares e as armas de uso exclusivo do exercito. Os principais destinatários do direito prisional são oriundos de territórios de esgoto a céu aberto, nenhum posto público de saúde ou escola pública com fornecimento regular de merenda. E essa sentença não é conjuntural, faz parte da estrutura de estado e da própria história brasileira. O uso da violência com fins de controle social assegura a manutenção da ordem social e faz todo sentido em Salvador: metrópole brasileira de maior concentração de negros favelados por metro quadrado, cidade detentora dos mais expressivos indicadores de desigualdade sócio-racial e criminalização de jovens negros. No entanto, não perdemos de vista que esta lógica se mantém como uma política de orientação nacional. Setores governistas falam que “outros ramos da vida pública não estão tão mal assim. Afinal, temos reserva de cotas em universidades e uma classe média negra emergente, com plenos poderes de comprar um carro zero, a perder de vista”. Matar jovem negro então seria ,segundo esta lógica, conseqüência da “governabilidade”. Mas os técnicos do governo esquecem que sem o direito à vida não se pode gozar nenhum outro direito. O desenvolvimento tem que ser integral, tem que se verificar em todos os âmbitos de nossas vidas. Os jovens negros de Vitória da Conquista, Pero Vaz, Nordeste, Alto do Coqueirinho, Cajazeiras e outras comunidades da periferia baiana, não terão oportunidade de gozar das políticas de ação afirmativa ou das tão prometidas benesses do PAC se forem assassinados pela polícia ou cumprirem pena numa instituição prisional a maior parte de suas vidas.
A política criminal “de tolerância zero” e a “guerra contra o terror” são produtos importados da tecnologia de segurança norte americana que devem ser adotados pelo Brasil se quiser manter o diploma da ONU de “país emergente”. Não é à toa a idéia de implementação de políticas como privatização do sistema prisional, julgamentos por videoconferência e o regime disciplinar diferenciado RDD no Brasil. O jovem negro descamisado de fuzil na mão que hoje se coloca como inimigo público muitas vezes não conheceu nenhuma outra intervenção governamental fora a da polícia no bairro onde nasceu, mas agora tem câmera digital, rastreamento de celular, escuta telefônica, veículo blindado, tanque de guerra…e todas as tecnologias das forças armadas brasileiras voltadas contra ele. E não há nenhum privilégio revervado para qualquer “facção criminosa”. Não há “poder paralelo”, ou “toque de recolher “capaz de barrar este processo genocída de criminalização que invade a chamada “pós modernidade” como um blindado passando sobre o corpo de uma criança negra-favelada. Na “Bahia de todos nós”, se disser “Êa!”, vai virar peneira… se disser que “Éh Noix!” vai ser bagaçado do mesmo jeito. Estudos antropológicos identificam vários times de futebol, várias linguagens, várias gírias, vários sonhos entre jovens negros de favela… Mas quando o inimigo fardado chega, a bagaceira é uma só. Independente de muitos destes jovens negros verem o perfil de seus semelhantes como “alemão” (inimigo), todos estes são vistos da mesma forma pela atual política nacional de segurança: um dejeto da ordem social brasileira que tende a ser eliminado ou escondido através das trancas, de preferência antes da copa de 2014, pro sangue não espirrar na cara dos gringos.
Distante da visão analítica se opera um genocídio sem prazo de término. Para aqueles que estão no olho do furacão, pouco importa as estatísticas; sentem na pele o que os técnicos tentam explicar. O parecer técnico não consegue,por exemplo, decodificar a revolta propiciada pelo assassinato de Levi Monteiro Reis, um jovem negro de 22 anos executado sumariamente por agentes da polícia civil em Cajazeiras. Segundo familiares, o assassinato aconteceu quando o rapaz estava em uma comemoração junto a um grupo de jovens que estava fumando erva quando policiais civis chegaram já atirando. Uma bala perfurou o coração do rapaz, que não resistiu e morreu. Levi foi visto sendo colocado na viatura pelos policiais civis, mas o seu corpo foi na verdade levado para o hospital e apresentado como ignorado por policiais militares, apesar de familiares informarem que o rapaz estava com documentos de identificação. A família de Levi denunciou ainda que um amigo do rapaz foi obrigado a mentir em uma das oitivas do inquérito que apura o caso; policiais teriam intimidado o rapaz e induzido-o a mentir sobre drogas e armas plantadas pelos próprios policiais no local do crime. A família e a comunidade de Levi em 19 de janeiro organizaram uma manifestação que foi do Ponto 11 em Cajazeira até a frente da 13º Delegacia de Polícia, onde provavelmente estão lotados os policiais que atiraram em Levi. A família do rapaz está inconsolável. Amigos sentem sua falta… lamentam a perda… Mas para o Estado, Levi é só mais um número, mais um cadáver negro a ocupar as gavetas geladas do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues como “traficante que reagiu a prisão”, figurante de mais um “auto de resistência” forjado pela polícia.
Não negamos aqui que em diversas vezes tenhamos defendido a demissão de Cesar Nunes. A própria Campanha Reaja! pautou essa demanda como um ponto a ser vencido. Por outro lado, medidas reformistas como as mudanças de cargo provocadas na SSP correspondem agora a necessidade de reorganização das forças de governo que apóiam a política de segurança pública em vigor. Não nos arrogamos a nos auto-intitular “especialistas” no assunto, mas tampouco somos ingênuos ao ponto de pensar que uma mudança no quadro funcional da SSP seria capaz de mudar a rota do projeto genocida de segurança em curso na Bahia. Para a comunidade que sobrevive em ruas, favelas e prisões deste estado “é aquilo mesmo, não muda nada!” Para a ferocidade da segurança pública, “foram-se os anéis, mas ficaram os dedos!”
*Lio Nzumbi é graduado em Sociologia na Universidade Federal da Bahia e graduando em Direito, também pela UFBA.
[1] NZUMBI,Lio. A ressocialização e a seletividade sócio-racial como fins da pena de prisão na Bahia. Monografia aprovada como requisito para conclusão do Bacharelado em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia-UFBA.Salvador-Ba, 2010. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – como requisito parcial para obtenção do grau do Bacharelado em Sociologia na Universidade Federal – Curso de Ciências Sociais – Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
[2] 1 Extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso. Ex.: o g. de judeus na Segunda Guerra Mundial 2Derivação: por extensão de sentido. destruição de populações ou povos Ex.: uma guerra nuclear resultaria num verdadeiro g. 3aniquilamento de grupos humanos, o qual, sem chegar ao assassínio em massa, inclui outras formas de extermínio, como a prevenção de nascimentos, o sequestro sistemático de crianças dentro de um determinado grupo étnico, a submissão a condições insuportáveis de vida etc.
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss. São Paulo: Objetiva, 2001
[3] Na tentativa desesperada de salvar seu próprio emprego titular da SSP-Ba fez em 10.11.2010 roda de imprensa em hotel cinco estrelas para publicar um tal balanço da segurança pública.
[4] Idem
[5] Publicação anual da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde.
[6] Disponível em: Instituto Sangari.
[7] AZEVEDO, Solange em: Cidade amedrontada -Explosão dos índices de criminalidade em Salvador aterroriza a capital baiana, e moradores evitam sair de casa à noite. Isto é, acesso em 25 de janeiro.
[8] Ver em: Aumenta o Número de Jovens Negros Assassinados: Esse índice é maior que o verificado em 2005, quando o risco era três vezes maior em relação a jovens brancos.
[9] Mapa da violência – negro têm 130 vezes mais chances de ser assassinado.
[10] Ver vídeo: Reaja ou será Mort@!
[11] Ver vídeo Reaja!
[12] SANTOS, Andreia Beatriz Silva em: Morte por causas externas: um estudo sobre a identificação da raça/cor da pele no Instituto Médico Legal de Salvador/Bahia, 2007.
[13] “FRAUZINA, Ana Luiza advogada mestra em Direito e ativista da organização negra Enegreser em texto que resume a sua dissertação de mestrado intitulada ‘Corpo negro no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro”. Irohim – Comunicação e articulação política a serviço dos afro-brasileiros .Brasília, ano XI, n 16, abril/maio 2006
[14] Ver Duarte, Rebeca Oliveira em Genocidio do Povo Negro: força da erxpressão ou expressão da força?
*Lio Nzumbi: graduado em Sociologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e graduando em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).
Fonte: UNE Cimbate ao Racismo