Ódio à democracia, por Paulo Fernandes Silveira

Enfrentamos no Brasil a reação ultraconservadora a uma forma de democracia que começava a ensaiar uma abertura para a mobilidade social. Essa reação apresenta-se como um ódio à democracia.

Em 2014, quando ainda ministra da Igualdade Racial, a militante do movimento negro e cientista social Luiza Bairros formula uma questão que marca o cenário político brasileiro nos últimos anos: “o racismo fica mais explícito diante da mobilidade social da população negra”.  https://www.geledes.org.br/racismo-fica-mais-explicito-diante-da-mobilidade-social-da-populacao-negra-diz-luiza-bairros/ As políticas de ação afirmativa e os programas de transferência de renda dos governos Lula e Dilma permitiram a mobilidade social, não apenas da população negra, mas também das pessoas pobres e periféricas. Esse processo de mudanças motivou o empoderamento de diversos setores da sociedade civil, tais como: das organizações estudantis e dos movimentos feministas e Lgbtqia+. 

As manifestações racistas não foram as únicas reações contrárias a esse processo de mobilidade social. O atual governo federal foi eleito sustentando uma agenda política que visa fortalecer os mecanismos de manutenção da estratificação social. Valendo-se de arbitrariedades jurídicas e políticas, o atual governo assumiu o poder para impor uma reação ostensiva ao processo de mobilidade social.

Nas últimas décadas, o filósofo Jacques Rancière tem contribuído para o debate sobre o sentido do conceito de democracia. No livro O desentendimento, publicado na França em 1996, Rancière trabalha com a ideia de uma democracia que possa romper com a ordem da distribuição dos corpos, dos lugares, dos poderes e das funções, a partir dos dissensos que saltam à tona com a tomada da palavra das pessoas historicamente silenciadas nas sociedades estratificadas. Nesse sentido, a democracia implica numa intensa e permanente dinâmica social.

Desde a Grécia Antiga, essa ideia de democracia provocou o ódio de inúmeros filósofos ocidentais. Como resposta a essa temível dinâmica social, foram criadas outras concepções de democracia. Em 2005, Rancière publica o livro O ódio à democracia. Esse trabalho retoma a análise do ódio daqueles filósofos, mas também discute o ódio dos fundamentalistas à concepção liberal de democracia. Para os fundamentalistas, mesmo uma democracia que mantenha o poder oligárquico, é uma ameaça aos costumes e práticas religiosas. 

nfrentamos no Brasil a reação ultraconservadora a uma forma de democracia que começava a ensaiar uma abertura para a mobilidade social. Essa reação apresenta-se como um ódio à democracia. Esse ódio não está representado, apenas, pelos grupos oligárquicos e fundamentalistas. Pela primeira vez, a sociedade brasileira passou pela experiência de uma democracia que questionou os mecanismos da estratificação social. Será preciso lutar pela democracia, por uma democracia realmente comprometida com as ações afirmativas e com os programas de transferência de renda.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

+ sobre o tema

Aplicativo inglês recebe denúncias de racismo nos estádios

O grupo inglês Kick it Out lançou, no...

Suíço é excluído do Campeonato Europeu após postagem racista contra franceses

Um vídeo postado logo após o título mundial de...

Universidades precisam ter autonomia e fazer o acompanhamento dos alunos

CIBELE YAHN DE ANDRADEESPECIAL PARA A FOLHA  A educação...

para lembrar

Celebridade é liderança política?

A sociedade brasileira e em particular o movimento negro...

Caso Luana Barbosa por Rodnei Jericó

Após três anos do assassinato de Luana Barbosa, negra, lésbica,...

Polícia de Moscou detém jovens que protestavam por morte de torcedor

Policiais detiveram neste sábado vários jovens radicais que planejavam...
spot_imgspot_img

Relatório da Anistia Internacional mostra violência policial no mundo

Violência policial, dificuldade da população em acessar direitos básicos, demora na demarcação de terras indígenas e na titulação de territórios quilombolas são alguns dos...

Aos 45 anos, ‘Cadernos Negros’ ainda é leitura obrigatória em meio à luta literária

Acabo de ler "Cadernos Negros: Poemas Afro-Brasileiros", volume 45, edição do coletivo Quilombhoje Literatura, publicação organizada com afinco pelos escritores Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa. O número 45...

CCJ do Senado aprova projeto que amplia cotas raciais para concursos

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou nesta quarta-feira (24), por 16 votos a 10, o projeto de lei (PL) que prorroga por dez...
-+=