A influência de 2020 na subjetividade do homem preto, e como um Artista Responde

Desde 2004 desenvolvo minha pesquisa em pintura e desenho, tendo participado de exposições coletivas e individuais.  Em 2020, esse momento de pausa, possibilitou-me aprofundar em algumas. Assim finalizei duas séries que resultaram na exposição “O Que Nunca Vão Apagar”. Que teve espaço na Casa de Cultura Itaquera na periferia de  São Paulo em 21 de novembro.

Partindo da minha visão como homem negro, a mostra reuniu nove desenhos da Série “Quem matou Basquiat?” e duas pinturas “Desconversando o Eu”. Desenvolvidas sob influência do isolamento e do racismo violentamente registrado com imagens e requintes de crueldade durante o ano. Que no entanto são a ponta do iceberg do genocidio contra os povos pretos no Brasil. 

Utilizei nanquim, lápis grafite, tinta guache, acrílica e marcadores para construir imagens complexas,cheias de camadas,silhuetas, escrita e a anatomia do corpo humano, pensando como o racismo estrutural e a cultura eurocêntrica apaga e impõe limites de quem pode ser artista; De como tratar o legado desses, assim como os exclui.

Porém não foi uma demanda de agora, na realidade, o primeiro desenho que fiz da série foi feito em 2018 quando viajei para Brumadinho. Meu sonho era conhecer o Museu de Inhotim, o lugar que me deixou impressionado por vários motivos, alguns positivos e muitos negativos. 

Inhotim é a sintese do racismo extrutural brasileiro e consequencia direta da escravidão. 

E o que me deixou perplexo no museo foi o retrato da visão de arte do branco rico, onde o negro e o indigena tem espaço apenas em suas mazelas e pelo olhar do extrangeiro. Os dois dias de visita ao museu tinham me dado outra visão sobre a arte, a relação de poder que ela chancela, e o consequente apagamento de existências.

E voltando a Belo Horizonte, como uma epifania, ou respostas dos ancestrais. Cheio de malas, decidi dar uma última volta na cidade e ir no CCBB de lá, e me surpreendi quando vi que estava em  exibição a exposição do Basquiat, que eu tinha visto em São Paulo naquele mesmo ano, porém ali, depois da visita em Inhotim, ganhou um significado totalmente diferente. 

O prédio e a montagem de BH ressaltaram a grandeza do trabalho de Basquiat e era como se ele me respondesse e me indicasse as respostas que devemos dar.

Imagem: Desenhos I, II, III da série – naquim, lápis, marcadores, acrilica sobre papel – 2020

Série “Quem matou Basquiat?”

Em meu processo de criação, busco ter uma base narrativa para a criação das minhas imagens. Para esta série revisitei a história da vida de Jean. me vendo no seu lugar de homem preto, artista, encarando o racismo, estereótipos e os próprios problemas psicológicos. Digerir um momento onde se é erguido no lugar de “Preto Unico”. Já que na narrativa da arte eurocêntrica, a dita “História da Arte” ele foi o único erguido como gênio, ao lado de Da Vinci, Picasso ou seu colega Andy Warhol.  E até hoje isso acontece, seja em questões mercadológicas, onde os galeristas e colecionadores só se interessam em grande parte por seus trabalhos, seja no cenário acadêmico.

Tudo isso tem uma relação direta com a morte prematura de Basquiat. Enquanto suas pinturas e objetos valem milhões para galeristas e colecionadores brancos, ele não teve nada, não usufruiu de suas conquistas e morreu doente, com medo, inseguro de si. 

Novamente a humanidade roubada do corpo preto e o retorno a uma mercadoria. 

Essas questões e resgates que busco nesta série, refletindo sobre o momento que estamos vivendo e pensando nesse corpo preto que tem sentimentos, subjetividade, afetividade, medos e alegrias. Nas dificuldades de existência e expressão dessas subjetividades, já que a todo momento somos convidados a desistir, nos entregar a entretenimento barato, fuga da realidade, ou desacreditados pelas estruturas que nos exclui e nos matam – se não a bala, com doenças ou a desesperança. 

Imagem: Desconversando o eu – Oleo Sobre algodão – 2020

Díptico “Desconversando o Eu”

feito a óleo, faz a transição das silhuetas para o realismo, tentando tirar a imagem do corpo do simbolismo chapado que aparece nos desenhos, focando ainda mais na discussão do corpo preto estereotipado, onde os elementos elencados pela sociedade racista estão apagados. Elas são perguntas, chamamentos para se pensar a expressão de sentimentos, inseguranças, relação com o mundo e também falar de existência.   

Protagonizar e conquistar territórios

De certa forma a exposição “O que nunca vão apagar” é uma sintese do que foi 2020 para mim enquanto homem preto. Representativa de várias formas, primeiro que teve sua abertura no mês da consciência negra, segundo que discute as barreiras de ser um artista preto no Brasil e em mais de 10 anos, foi a primeira exposição que recebi para produzir. Terceiro que, infelizmente, a pergunta “Quem matou…” pode ser feita sobre Marielle, Miguel, Agatha, João Vitor, Evaldo, Amarildos e a lista segue… 

E finalmente, é um grito que diz, que apesar de tentarem, nossa existência e valor, eles nunca vão apagar.

Vista da mostra: “O que nunca vão apagar” – Casa de cultura Itaquera – SP 2020
Diogo Nógue (Diogo Nogueira Silva, 13 de Setembro de 1988 – )  é artista visual, escritor e ilustrador, nascido em Suzano-SP e vive em São Paulo. Formado como Designer Gráfico pela ETEC Carlos de Campos e Artista Visual pela Belas Artes de São Paulo. Entre seus trabalhos literários lançou os livros “Trovinhas das cores e amores” de 2016, o de poesias “Pedra Polida” de 2019 e participou da coletânea “Pretos em Contos” em 2020. Como artista visual tem suas principais exposições “Psicodrama” de 2004, “De onde os Medos crescem” 2017, “Entre o Real e o Sonho” 2018. 

Para mais reflexões sobre os temas abordados nesse artigo escrevi os textos 

Inhotim – A arte como Poder : https://www.diogonogue.com.br/inhotim-arte-como-poder/

Miguel de Rio Branco – Dualidade e apagamento – https://www.diogonogue.com.br/miguel-de-rio-branco-dualidade-e-apagamento/ 

O Ano do (Re)conhecimento – https://www.diogonogue.com.br/o-ano-do-reconhecimento/

Ser ou não ser um artista negro – https://www.diogonogue.com.br/ser-ou-nao-ser-um-artista-negro/

Quem matou Basquiat ? – https://www.diogonogue.com.br/quem-matou-basquiat/

 

contatos:

www.diogonogue.com.br

Instagram e facebook @diogonogueart

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

A lei 10.639/2003 no contexto da geografia escolar e a importância do compromisso antirracista

O Brasil durante a Diáspora africana recebeu em seu...

Pedagogia de afirmação indígena: percorrendo o território Mura

O território Mura que percorro com a pedagogia da...

Aluna ganha prêmio ao investigar racismo na história dos dicionários

Os dicionários nem sempre são ferramentas imparciais e isentas,...

Peres Jepchirchir quebra recorde mundial de maratona

A queniana Peres Jepchirchir quebrou, neste domingo, o recorde...

para lembrar

Enciclopédia joga luz sobre mais de 500 personalidades negras ignoradas pelos livros

Ignoradas, deturpadas e menosprezadas. É assim que as histórias dos...

Manifest: recriando a memória da Europa sobre o tráfico de pessoas escravizadas

Pessoas escravizadas. Pessoas. Antes de serem comercializadas e transportadas...

Exposição em Londres traz a visão de 40 artistas sobre Michael Jackson

National Portrait Gallery recebe mostra sobre o rei do...
spot_imgspot_img

Chega a São Paulo Um defeito de cor, exposição que propõe uma revisão historiográfica da identidade brasileira por meio de uma seleção de obras em...

De 25 de abril a 1º de dezembro, o Sesc Pinheiros recebe "Um Defeito de Cor". Resultado da parceria entre o Sesc São Paulo...

Aos 76, artista trans veterana relembra camarins separados para negros

Divina Aloma rejeita a linguagem atual, prefere ser chamada de travesti e mulata (atualmente, prefere-se o termo pardo ou negro). Aos 76 anos, sendo...

Passeio pela mostra “Um defeito de cor”, inspirada no livro de Ana Maria Gonçalves

"Eu era muito diferente do que imaginava, e durante alguns dias me achei feia, como a sinhá sempre dizia que todos os pretos eram...
-+=