As religiões afro-brasileiras são reconhecidas como religiões de matriz da natureza, pois para elas a natureza possui uma importância central. Abordaremos neste texto duas questões que marcam a relação entre a natureza e as religiões afro-brasileiras: os significados atribuídos à natureza e a utilização dos elementos e espaços naturais na ritualística, especialmente nas oferendas e sacrifícios. Este texto é uma versão modificada do terceiro capítulo do relatório final da pesquisa Kossi ewe, kossi orixá: percepções sobre a natureza entre adeptos das religiões afro-brasileiras em Recife e João Pessoa realizada pelos autores, de julho de 2008 a julho de 2010 com auxílio financeiro do CNPq e da FUNDAJ. Os dados analisados foram construídos a partir de observações diretas e por meio de entrevistas e grupo focal com pais e mães de santo do candomblé e da umbanda nas duas cidades.
O motivo da pesquisa surgiu por constatarmos que havia vários discursos que atribuíam o status de “ecológica” às religiões afro-brasileiras, quer pelos adeptos, quer pelos estudiosos e outros atores políticos. Reiteradamente nos deparamos com afirmações do tipo: (1) as religiões afro-brasileiras já eram ecológicas bem antes dos movimentos ecológicos, uma vez que a reverência aos elementos da natureza, corporificados nos orixás, constitui o âmago da sua experiência religiosa; (2) as religiões afro-brasileiras são intrinsecamente preservacionistas, já que nelas os espaços naturais (como rios, matas, cachoeiras e outros) constituem locais de culto tão importantes quanto os templos (terreiros e roças); (3) a perspectiva ecológica constitui uma das heranças da tradição africana preservada nestas religiões. Neste sentido, embora todas as religiões afro-brasileiras possam ser entendidas como “ecológicas”, seria o candomblé, em função da sua (postulada) maior proximidade com a tradição original quem melhor atualizaria essa qualidade, e, (4) essa tradição africana matriz consiste, na verdade, num outro modelo civilizacional cujos valores podem ser contrapostos ao modelo ocidental-cristão. A problemática, portanto, girava em torno de um tema central: “A natureza”. Daí a importância de analisarmos mais de perto os significados e os usos que os adeptos dessas religiões apresentam para a Natureza, o que também nos leva a discutir o caráter preservacionista das mesmas.
Primeira questão: significados para Natureza
Uma primeira acepção, que possui também um caráter mais generalizante é aquela que associa a natureza (e os orixás) aos quatro elementos (água, terra, fogo e ar). De acordo com este pensamento, os quatro elementos estão presentes em tudo, incluindo o ser humano que compartilha com os orixás e com a natureza uma essência em comum:
A importância da natureza para o candomblé é fundamental, „porque como os orixás são os representantes míticos de cada elemento da natureza‟, do fogo, da água, das folhas, do ar… O orixá está relacionado a tudo isso. A maioria dos rituais dentro do candomblé, eles só servem pra fortalecer, é uma forma de você estar em harmonia com a própria natureza. Quando você faz rito pra Oxum, você está fortalecendo a força do rio, não é? Você está restabelecendo, alimentando, „você está ao mesmo tempo se harmonizando com o seu elemento principal; se você for no caso filho de Oxum, você está se harmonizando com essa força, que é a força do rio, da água doce‟ (Pai Antenor/João Pessoa).2
Nesta perspectiva, a conexão adepto-natureza-orixá passa pelo pertencimento em comum a um dos quatro elementos. Embora esta divisão traga consigo alguns ecos das chamadas ciências herméticas (tais como a astrologia e a alquimia), ou das suas versões modernas difundidas pela Nova Era, essa associação é apresentada como parte do conhecimento “tradicional”, atualmente em processo de resgate, conforme nos explica este outro babalorixá:
Nós somos cultuadores desses elementos: fogo, terra, fogo e ar. São quatro. Até no „nosso calendário na Nigéria‟, o calendário nosso antes do calendário ocidental era feito com quatro dias. Cada dia representava um elemento: um dia representava a água, um dia representava o fogo; um dia representava o ar e outro dia representava a terra… Até o branco que nós usamos na sexta-feira é porque estamos utilizando o calendário ocidental, que é uma influência islâmica, porque se fosse acompanhar o dia do ar que é o dia que é representado para nós usarmos em homenagem a Oxalá, aí usaria na quinta (Pai Daniel/Recife).
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Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html