A outra história de Itajaí

Jornal Itajahy, da Fundação Genésio Miranda Lins, publica reportagem sobre a pesquisa do professor que amplia a historiografia da cidade. Documentos do século 19, pesquisados pelo professor José Bento Rosa da Silva, revelam a participação de africanos desde a fundação da cidade. Até então, a historiografia catarinense mostrava, que na região de Itajaí, vieram somente descendentes de africanos. A pesquisa do professor Bento realizada nos processos crimes do século 19, que estavam até 2004 no arquivo morto do Fórum de Itajaí, e em documentos do acervo do Centro de Documentação e Memória Histórica, faz com que as páginas da história de Itajaí sejam alteradas.

 

Africanos na origem de Itajaí

Documentos do século 19 enriquecem a historiografia local e desvelam um passado desconhecido da gênese de Itajaí

por José Isaías Venera

“O passado é cheio de vida e seu rosto irrita, revolta, fere, a ponto de querermos destruí-lo ou pintá-lo de novo.” Milan Kundera, escritor tcheco e conterrâneo do literato Franz Kafka, cria suas histórias como se fossem espelhos de uma constante luta contra o poder no interior das relações sociais. Em “O livro do Riso e do Esquecimento”, Kundera diz que “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. Luta imanente à função dos museus e arquivos históricos. Espaços de resistência ao esquecimento.

Obstinado na luta pela inclusão de novas memórias na história de Itajaí, José Bento Rosa da Silva, que coordenou o projeto “Memória dos Bairros” até julho de 2006, pesquisa nos acervos do Centro de Documentação e Memória Histórica, desde meados da década de 1990, pistas que o ajudam a interpretar o passado de afro-descendentes na região. Mas, além dos descendentes, o pesquisador identificou referências à presença de africanos, que cruzaram o oceano Atlântico, desde a gênese de Itajaí. A descoberta dá visibilidade a um passado que é ignorado em boa parte das narrativas históricas locais, mostrando que a preservação da memória pode ser exercida, também, pelos mais fracos, caracterizando-se como resistência a práticas seletivas de preservação de memórias que não levam em conta a diversidade étnica e cultural.

As primeiras descobertas

Em documentos do Cartório de Registro de Imóveis do século 19, as primeiras descobertas: indicação da presença de africanos em Itajaí. Nessa época, os afro-descendentes e africanos eram considerados como imóveis que poderiam ser vendidos e comprados a qualquer momento. O professor explica que, quando se vendia ou se trocava escravos, era feita, também, uma avaliação da “mercadoria”. No caso de escravos, aparecem nos registros a idade, o estado civil, as qualidades, os defeitos (achaques) e a origem. Foi observando a indicação da origem que o historiador descobriu que “na nossa região tinham escravos vindos de países da África. Falava-se só em crioulos, mas os documentos nos mostram que havia, também, os escravos africanos”.

Bento comenta que, na historiografia catarinense, há referências somente à existência, no passado, de africanos em Florianópolis, São Francisco do Sul e Laguna. Agora, com a sua pesquisa, há a presença de africanos na região de Itajaí.

 

 

Caminhos da pesquisa

Em 2002, Bento foi cavoucar documentos empoeirados no sótão do Fórum de Itajaí e que, em 2003, integraram os acervos do Centro de Documentação. São processos cíveis e criminais, do século 19 e 20, com referências a africanos que moravam em Itajaí.

 

A pesquisa altera o curso da historiografia catarinense. Segundo o professor, nos trabalhos de história de Santa Catarina, há um silêncio sobre a presença de africanos no Estado. A ênfase é dada sempre para os crioulos – descendentes de africanos nascidos no Brasil.

 

Na história regional, o problema se agrava. Enquanto o pesquisador vem dando visibilidade a esses documentos – publicando artigos científicos e livros -, boa parte dos trabalhos de valor histórico se resume a discorrer sobre os afro-descendentes na condição de escravos, propagando sua invisibilidade de uma participação construtiva na história e na cultura da Itajaí. Livros como “A Pequena Pátria”, de Marcos Konder, “Pequena história de Itajaí”, de Edison d´Ávila, e “Famílias de Itajaí: mais de um século de história”, de Marlene Rothbarth e Lindinalva Deólla, são exemplos de trabalhos que ignoram a participação de afro-descendentes e desconhecem a presença de africanos na origem histórica de Itajaí.

 

Para o professor, a ênfase dada somente à condição de escravos aos afro-descendentes produz o esquecimento de peculiaridades culturais desses grupos étnicos. É nesse cenário de embate étnico e de classe que o trabalho do professor ganha mais importância. Bento mora em Itajaí desde meados dos anos 80, quando deixou o seminário em Brusque e veio cursar graduação em História na Univali. Hoje, doutor em História, Bento tem Itajaí como sua cidade.

 

Uma nova história da origem de Itajaí
Com as pesquisas do professor Bento, desde a emancipação de Itajaí, em 1860, africanos e afro-descendentes estavam presentes no cotidiano da vila. Documentos jurídicos, religiosos e da câmara legislativa dão mais do que visibilidade à existência desses grupos étnicos: indicam sociabilidades oriundas do continente africano. O historiador comenta que, investigando esses documentos, alguns nomes de africanos foram identificados: Rafael, da nação africana; João e Manoel, de nação Congo; Antônio, Felipa, Joaquim e Manoel, de nação; Maria, de nação Benguela; Antônio, de nação Monjolo; Antônio, africano. A expressão “de nação” era uma forma de denominar os africanos no Brasil.

Os registros indicam, além da forte presença de africanos já no surgimento de Itajaí, suas profissões, quando eles eram submetidos à condição de escravos. Eram marinheiros, pedreiros, carpinteiros e trabalhadores da lavoura. Para o Jesuíta Antonil, eles eram as mãos e os pés dos senhores. Um exemplo é o pedreiro Simeão, escravo de Agostinho Alves Ramos, que, em 1835, construiu a primeira igreja de pedra e cal de Itajaí. Hoje, algumas paredes da edificação, construídas pelas mãos do descendente de africanos que, provavelmente, herdou a profissão de seus antepassados, é parte da Igreja da Imaculada Conceição.

 

Festa de Nossa Senhora do Rosário

Bento é um homem em paz. Mas não há como ficar indiferente a trabalhos que ignoram a presença de afro-descendentes na cultura local. O professor cita o livro “Festas e tradições populares de Itajaí”, de Edison d´Ávila e Márcia d´Ávila (1994), que não menciona a tradicional “Festa de Nossa Senhora do Rosário”. Mesmo com a segunda edição ampliada do livro, em 1998, que incluiu a Farra do Boi como mais uma tradicional festa da cidade, não há referência à festa de tradição afro-descendente. Para o professor, livros desta natureza enfatizam aquilo que a história tradicional de Santa Catarina sempre fez: silenciam a presença de afro-descendentes e africanos no Estado. “Esse silêncio é uma exclusão histórica que reforça o mito de que Santa Catarina é uma Europa incrustada no Brasil”, com semblante sereno, conclui Bento.

O livro “Festas e tradições populares de Itajaí” foi editado pela própria Fundação Genésio Miranda Lins, em 1993, num período em que, no próprio Centro de Documentação, havia e ainda há, em seus acervos, fotos e registros históricos sobre a “Festa de Nossa Senhora do Rosário”. A festa existe desde o século 19, quando a igreja Católica, no ímpeto de coptar mais almas, criou santos que passaram a representar a cultura cristã de afro-descentendes. Foi neste contexto que os senhores de escravos e a Igreja Católica permitiram a organização de festas de matriz africana no dia dos novos Santos. Entre eles, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e São Gonçalo.

Em 1992, a Festa Nossa Senhora do Rosário foi reinventada pelo Movimento Negro Tio Marco. Hoje, Núcleo Afro-descendente Manoel Martins dos Passos da Foz do Rio Itajaí-Açu.

 

O trabalho do preconceito

A história do Brasil, desde o período colonial, é marcada por práticas racistas e preconceituosas. Em Itajaí, políticos, comentaristas, memorialistas, jornalistas e historiadores produzem, muitas vezes, suas interpretações sobre o passado, inseridos na desqualificação e apagamento de traços da cultura africana.

Em correspondências expedidas à Câmara de Vereadores de Itajaí, em 22 de maio de 1882, o Secretário Francisco Vitorino da Silva encaminha ao Presidente da mesma, Guilherme Asseburg, a advertência: “Ilmo Sr. Participo Vossa Senhoria que hoje, chamei e repreendi ao escravo de nome Francisco (Preto) do senhor na atividade, por haver eu tido denúncia verbal, que o mesmo era (feiticeiro) e como o artigo 31 do código de postura da Câmara Municipal indica que deve-se observar; por isso fiz por ser empregado da referida câmara.”

Mesmo depois da abolição da escravatura, as marcas de preconceito são registradas na história. Nos periódicos de Itajaí, conteúdos que expressam um ideário de povo brasileiro – que dependeria da exclusão de etnias de matriz africana -, eram propagados.

O mesmo, ainda, pode ser identificado quando trabalhadores e práticas culturais existentes em nossa cidade, antes mesmo de sua fundação, estiveram excluídos dos livros e artigos que pretendiam contar a história de Itajaí selecionando famílias ou dando ênfase à política e à economia.

Práticas de resistência e ações afirmativas

A população afro-itajaiense encontrou formas de resistência aos locais de sociabilidade excludentes, como narra Aldo Mário Cunha, em depoimento à historiadora Marlene de Fáveri: “nem no Barroso, nem no Guarani, nem no Bloco dos XX, não entrava gente de cor”. Diante dessa realidade, descendentes afros criaram seus próprios espaços, como o Clube de Regatas Cruz e Sousa, de 1920, o Humaitá Futebol Clube, do mesmo ano, e a Sociedade Cultural Beneficente Sebastião Lucas, de 1952.

 

Em 1979, Adilson Pacheco tentou organizar, pela segunda vez, um movimento negro em Itajaí inspirado no Movimento Negro Unificado, de 1978, em São Paulo. Em 1984, no Colégio Salesiano, professores influenciados pela Teologia da Libertação produziram, em novembro, uma edição do periódico “Idéia Força” discutindo a realidade dos afro-descendentes no Brasil. Os efeitos do periódico contribuíram para a organização do movimento negro de Itajaí. Em 1988, outro acontecimento contribuiu para a organização do movimento: a Campanha da Fraternidade, liderada em Itajaí pelo Padre Sérgio Jacomelli, da Paróquia do Bairro Fazenda, que resultou na criação da pastoral do negro.

 

No início da década de 1990, foi criado o Movimento Negro Tio Marco, organização sem filiação religiosa ou partidária, em defesa da memória afro-itajaiense e contra toda forma de preconceito. A principal ação do movimento foi a criação do projeto de Lei nº 025/93, que institui a inclusão do conteúdo “História afro-brasileira nos currículos das escolas municipais de Itajaí”. Ação que representa a primeira conquista, no Estado, da aprovação de uma política de ação afirmativa.

 

 

Fonte: Soupapasiri

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